"Existe um ser que mora em mim como se fosse casa sua, e é."
In Contos de Clarice Lispector
No dia em que Clarice morreu, eu não a conhecia; balbuciava muito poucas palavras e estava longe de perceber a importância que teriam na minha vida. Enquanto acordava lenta e preguiçosamente para a palavra, Clarice morria.
Não me recordo exactamente do dia em que conheci Clarice. Leram-nos um excerto, e foi lido só para mim. Durante muito tempo deambulei por prateleiras vazias de Clarice, a ausência a pautar a não leitura.
Até que começaram a chegar. Os títulos. Tacteados cegamente através de pesquisas à descoberta; primeiro
A Paixão Segundo G.H., onde reencontrei as primeiras palavras ouvidas. Depois,
A Hora da Estrela.
Neste último ano, olhar de gigante:
Laços de Família, numa frenética batalha contra a partida de Coimbra, face à impossibilidade do livro nas prateleiras da livraria central. Percorreu a cidade em contra-relógio até chegar a mim, com o táxi à espera ao virar da esquina, suspirando apenas pelo meu passo apressado carregado de Clarice. No Verão,
Os Contos lidos aleatoriamente, aqui e ali, dia atrás de noite de dia, quando o espírito se isolava nas ausências que pauta(ra)m os dias.
Agora, novamente livro de cabeceira, companheira imortal: o livro mais custoso,
Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, adia um outro que aguarda: no escuro, a maçã.
Em todos os dias que toco num texto de Clarice e o incorporo e lhe ofereço a minha pele - e o meu assombro e o meu sal - Clarice ainda (
nunca) não morreu.