terça-feira, 31 de janeiro de 2006

Paradoxos...


Era um tipo com sorte. Pouco inteligente, nem percebia muito bem como estava a leccionar Português. Em abono da verdade, não percebia ele nem ninguém que trocasse mais do que três frases com ele.
Não conhecia Bernardo Soares - "Bernardo Soares, Bernardo Soares... Não! Temos que dar Cesário Verde, Antero de Quental, mas Bernardo Soares... esse não." Para além disso, dos Maias do Eça só conseguia dizer: "Como é que eu hei-de explicar.... Os Maias, os Maias - falta-me a palavra - são... são espectaculares. E aquele Carlos!" Ao que lhe diziam (não sem água no bico): "Ai sim? E a fantástica Miss Sara?" E aqui o olhar perdia-se, a tentar buscar essa personagem misteriosa de que ouvia falar agora pela primeira vez...
Tinha um ar enfezado, pernas arqueadas que lhe davam um ar patusco. Pés enormes, face ao resto do corpo - ou pelo menos, sapatos enormes (que os pés nunca lhe foram vistos). O cabelo, ralo nas têmporas, causava-lhe o seu maior desgosto (público, que outros devia ter mais recônditos), pelo que andava a investigar a resolução do problema... se calhar, implantes.
Apesar de tudo, na verdade era sagaz. Fazia render este seu ar de patinho feio (que nunca chegará a cisne); apelava à piedade e, com isso, lá ia conseguindo safar-se mais ou menos. Ou seja, quando o substimavam, era capital para ele. Assim, lá ia fazendo o número dos parvos, que de vez em quando até tinha sorte.
Estava rodeado por mulheres que o viam como aquele coitadinho que anda sempre sozinho. E ele sorria perante a ingenuidade delas, por acharem que era quase um irmão mais novo. A ele, o que interessava era estar por perto... que o achassem idiota, que entretanto tratava do resto. E quando alguém dizia: "Esse é mais esperto que todos nós ", a resposta invariável "Ah, coitado! Ele é tão solitário. Na verdade, é um querido." E ele sorria e fazia olhos de carneiro mal morto, esfregando mentalmente as mãos...
As deixas de engate eram hilariantes: "Ai é? Estás na aeróbica? Sabes, então se calhar, também entro." Deixava qualquer uma perplexa, mas lá ia andando.
Certo dia confessou-me: "Sabes? Tenho raiva de mim mesmo. Adoro mulheres. Não posso estar muito próximo... é o que é. Eu sei que tenho namorada lá na terra, mas, não sei... Não consigo controlar-me. Eu quero resistir, mas depois não resisto. É um paradoxo! Tu sabes o que é um paradoxo? É uma coisa que é e não é ao mesmo tempo."
( imagem de Marc Chagal)

...Às gaijas que voltei!

Propõe-me a Salomé um inventário das frases feitas a que aludi no post anterior. A tarefa seria quase impossível. De ressalvar que são muitas, de todas as formas e feitios e funcionam com os dois géneros. Com isto quero dizer que o tipo brilhantina não conhece sexos - é para o menino e para a menina. Nos dois casos, parece-me absolutamente visceral, provocando a compulsão dos comportamentos.
Sendo assim, parece-me bem mais interessante o relato de casos conhecidos pelos visitantes deste sítio (que não é só meu).
Da minha parte, prometo voltar com um caso paradigmático que conheci há alguns anos, merecedor de registo.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2006

Então diz lá...

Ora cá está uma que já não ouvia há algum tempo. É das tais, que me deixa de sorriso nos lábios e me conduz, pelas vielas da memória, a pessoas adormecidas (ou não), que de vez em quando despertam ao sabor de uma melodia qualquer.

I've been on the road

I've been on vacation
I've been travelling light to reach my final destination
Now I'm coming home
So tell the girls that I am back in town
You'd better tell them to beware
Well they may go or they might try to hide
I follow on and I'll be there
So tell the girls that I am back in town
And if it's true I do not know
That every girl around had missed me since
I decided to go
I could be your friend
I could be your stranger
I could be the one your mother said would be a danger
Now it's up to you
(Jay-Jay Johanson)

Faz-me lembrar todos os "engatatões" que (re)conheci (e também, como é óbvio, todos aqueles que ainda estão para conhecer). Nada mais hilariante do que imaginá-los a passar lentamente a mão pelo cabelo a pingar de brilhantina, enquanto trauteiam a musiquinha para quem passa. E no final, o imperdível piscar de olho (claro que a brilhantina é virtual, mas absolutamente indispensável). Também os há discretos, mas ainda assim trauteam-na em segredo ao ouvido, procurando escapar ao reconhecimento.
Esta, deixa-me mesmo bem disposta.
(Fotografia de Henri-Cartier Bresson)

sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

O Cuspido da Maria

Aos mais incautos navegantes deste blog chamamos a atenção para o facto de este ser, por excelência, um post de gaja! Se for impressionável (a este tipo de abordagem), aconselhamos a que respire fundo e evite a leitura do referido. Declinamos qualquer responsabilidade quanto a possíveis enfartes ou ataques agudos de "Macho não lê baboseiras". Considerem-se avisados.
Encontramo-nos no início do meu percurso naquele porto que me oferecia trabalho. Apanhou-o uma colega, numa rua, escondido por entre rodas e medos. Não tinha idade para estar sozinho na rua, muito menos pela noite dentro, quando deambulam cães menos simpáticos, atraídos pelo cheiro da inocência e desamparo.
Levei-o para casa e, durante dois dias, mal disse palavra. Comia, dormia e olhava para mim com aqueles olhos que vieram a revelar-se enormes. Começamos a fazer companhia um ao outro, já que estávamos ambos em terra estranha...
No dia em que mudei de casa, foi comigo e passamos a ser três; foi uma decisão concertada, na qual ele não teve voto na matéria, mas acolheu com o despreendimento que o caracterizava. Passamos para uma casa mais ampla, com jardim, e passou a estar acompanhado também por Nefertiti. Ficou feliz, porque sempre era mais uma divisão para investigar e o acolher quando se aborrecesse.Os dias na Ilha começaram a passar mais rápidos.
Nunca perdeu alma de vagabundo, como se a aventura inicial o tivesse marcado a fogo. O mundo estava lá fora e sabia-o muito bem. Nenhuma de nós conseguia suportá-lo em casa quando se punha em lamentos, porque o chamavam. A vagabundagem meteu-o desde cedo em sarilhos. O espírito inquisitivo levava-o para territórios perigosos e certa noite voltou com ferida de guerra. Dois meses mais tarde, o inevitável - a curiosidade não matou o gato, mas roubou-lhe a cauda. Sem cauda e com um colar, arrastava-se vagarosamente pela casa , a que ficava na outra ilha, povoada por seres estranhos, como a outra gata, sempre altiva e de unha em riste. Dias complicados, em que nem conseguia passar a língua pelo pêlo, enfiar o focinho no aroma da terra e na comida que lhe caía no prato. Tornou-se melancólico.
O dia em que lhe retiraram o colar, foi, provavelmente, o mais marcante da sua infância. Recuperar os movimentos certeiros, a possibilidade de escapar-se à outra depois de se bambolear provocadoramente no focinho dela...
Cupido nunca aprendeu a lição. Foi um gato viajado, dividido entre duas ilhas. Nefertiti achava-o um gato delicado, com um miado que soava a francês, quando se propunha a seduzir uma das duas na esperança de mais comida no prato. Seis meses depois da perda da cauda, Cupido perdeu-se pelos caminhos de areia que o deveriam conduzir a casa. Desapareceu um mês. Graças à peculiaridade da falta que tinha, foi identificado certo dia, raquítico, a mendigar no parque de campismo da "cidade". Foi resgatado por Nefertiti, que nessa altura eu estava em serviço na outra ilha. Fazia a travessia de barco quando ela telefonou-me a anunciar o regresso do azarado compulsivo. Disse-me ela que o resgate foi comovente...
Depois disso, julgamos que a vagabundagem tinha ficado arrumada. Recusava-se a meter a pata fora de casa, provavelmente com medo que tornasse a não descobrir o trilho de volta. O sossego durou três semanas, que só não foram magníficas pela melancolia com que se postava à janela. Depois, decidiu-se e voltou a sair, pular para o muro e ir em busca dos outros como ele, da periferia. Nunca foi um animal tímido. De vez em quando trazia os amigos para casa, para partilhar o prato de comida que ele sabia farto. Outras vezes, trazia também os inimigos, perseguido pelas vielas felinas, refugiando-se em casa, distância de uma unhada.
Cupido acompanhou-me nos três anos em que estive na Ilha dentro da Ilha. Marcou o meu quotidiano muitas vezes aborrecido(e certamente também o de Nefertiti). Quando voltamos para casa, eu e ele, não suportou a ausência da areia, dos amigos que tinha nos telhados, do cheiro a mar mesmo ali. Cupido saiu um dia, como de costume, e não voltou mais.
A fechar...
De vez em quando tinhamos visitas expressamente para ele. Maria, do alto dos seus quatro anos, a ingenuidade aureolada pelos caracóis batia à porta e dizia-nos: "Vim ver o Cuspido".

(Trabalho de Mirek Dziewialtowicz)

quinta-feira, 26 de janeiro de 2006



Dias cinzentos…
Pertenço àquele grupo de pessoas que sofrem com o clima; sou mesmo de climas, literalmente! Se fosse de luas talvez fosse mais fácil, mais passageiro, mas sou de climas…
Estes dias frios e cinzentos tornam dolorosa a minha existência…
Sou um pouco nefelibata e isso, por vezes, no quotidiano, gera alguns complexos que, por sua vez, me leva a uma certa misantropia que, por fim, acaba num certo isolamento. Esta cadeia surge mais nos dias cinzentos! Para mim estes dias são o purgatório! Se tivesse sido o autor d´A Visão de Túndalo, narrativa religiosa da Baixa Idade Média, na qual o pecador passa pelos três espaços do Além (Inferno, purgatório e paraíso), ter-me-ia inspirado nos dias – da – já- referida – cor! Refiro-me ao purgatório em que a fronteira que o separa do Inferno é muito ténue, ambos locais de tortura…
O purgatório nem sempre existiu, pois o Além era, inicialmente, na sociedade medieval, binário, cingindo-se apenas ao paraíso e ao inferno. A necessidade de um terceiro espaço deu-se porque apareceram novas categorias económicas, ou seja, os males necessários. Aqueles que praticavam a usura, como os mercadores, que vendiam o tempo de Deus, levava a temerem pela sua vida após da morte! E foi neste contexto que a ordem eclesiástica resolveu o assunto da melhor forma que sabe e lhe compete. Concebeu então um local provisório onde todo cristão pudesse ter hipótese da salvação, após de umas torturazitas e, acima de tudo, de uns arrependimentozitos! Conveniente e justo!
O meu ser torna-se mais pesado nesses dias, e “vem-me à memória” todas as limitações que, por preguiça ou comodismo ou até mesmo por incapacidade, ainda não consegui superar. As limitações são os meus piores pecados!
De vestes cinzentas lá me vão aparecendo os dias… e, como alguém de quatro anos que conheço, eu vou dizendo e tendo a sensação de mais uma MISSÃO DESCUMPRIDA!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

Where Is My Love...





Desapareceu para parte incerta o meu mau humor - a pacificação graças a esta senhora. Suspende-me a respiração (e deixa-me com o indicador no repeat...).
(fotografia de Erwin Olaf)

"Dawn To Dusk"

Acabo de chegar da minha viagem até aqui, ainda com estas palavas nos lábios: imbecis são todos os que não pensam como nós. É evidente que, neste momento, apetece-me gritar Cambada de Imbecis aos 50,6% que elegeram Cavaco como presidente de todos nós (???).
Parece-me revelador que tenha sido eleito aquele que nada disse - o vazio de ideias em estado puro - e não me interessam as razões do silêncio. Certo é que foi eleito aquele que não revelou, em absoluto, qual a sua posição acerca de tudo aquilo que terá que assumir a partir de hoje.
Não sei se inconscientemente ou não, hoje meti no cd player The Smashing Pumpkins. E na ida (e vinda) do trabalho, ouvi incessantemente que "Despite all my rage, i am still just a rat in a cage." Agora remeto-me eu ao silêncio. "The Infinite Sadness."

sábado, 21 de janeiro de 2006

Prece de fim-de-semana...



Na Visão desta semana. Só não poria o apelo na boquinha do Soares.
Que seja um bom presságio...

quinta-feira, 19 de janeiro de 2006

Os corpos não ganham alma.




"(...)no instante em que ele é ‘posto em obra’, objectivado, o corpo vê-se aí refutado, desfolhado, reduzido ao nada. Seria como um efeito mortífero da aura: a devoração diáfana, pela imagem, do folio dos corpos”
Didi-Hubermann citado por Pedro Miguel Frade em Figuras Do Espanto.
Fotografia de Joel-Peter Witkin

Os Fantasmas não ganham corpo.

Em Novembro de 96, ainda eu não (re)conhecia bem Coimbra, tive o meu primeiro contacto com (o trabalho de) Witkin. No rescaldo da vigilância dos Encontros passava pelas Caldeiras e perdia-me na conversa e no folhear dos catálogos que por lá se vendiam. Foi um desses catálogos que me conduziu à exposição.
Ainda retenho a (quase) recusa do olhar no Pátio da Inquisição. A desmesura das fotografias largadas nas paredes; a especificidade daquele espaço a engalanar a singularidade daqueles trabalhos... os rostos horrorizados ou os passos rápidos dos outros visitantes, como se tivessem que despachar rapidamente aquela obrigação.
Ainda hoje não percebo o meu fascínio pelo trabalho de Witkin. Certo é que por vezes dou por mim a folhear o único catálogo que dele tenho, a assumir o título de uma das suas fotografias como identidade virtual e a buscar incessantemente um catálogo com aquela fotografia dele que mais me tocou. Ao inaugurar um dos meus últimos trabalhos de faculdade com uma reprodução da mesma, disse-me o professor que aquela fotografia era simplesmente soberba. Eu sei e não a encontro! A mulher atada (ao sonho) na Lua escapa-se ao meu olhar. Se calhar por isso ainda ando com o Witkin no canto do olho...

terça-feira, 17 de janeiro de 2006

Um ano depois, ainda Perto Demais.


Há aproximadamente um ano, fui ao cinema ver esta maravilha. E com esta, descobri esta outra(nestas coisas da música tenho tendência a apanhá-las tarde). Decidi rever a primeira, depois de ter passado o dia a ouvir a segunda no rádio do meu carro. Numa versão horrorosa legendada em brasileiro(que me foi dada há uns meses, já que eu anunciava aos quatro ventos que tinha adorado o filme), lá tive o prazer de degustá-lo novamente. É certo que a experiência foi algo estranha; tentei abstrair-me ao máximo da legendagem que teimava em aparecer. Exercício estóico de resistência à leitura, com a tentação (pecaminosa, no caso) de por vezes escapar-se-me o olho para as abomináveis letras. Enfim, não foi perfeito, mas foi muito bom poder visioná-lo novamente.
Lembro-me que há um ano saí da sala de cinema como se tivesse sido atingida por um raio. É certo que as espectativas não eram muitas (Julia Roberts, e tal). E, nestes casos, o estuporamento é muito maior, porque não é pressentido ou esperado.
Desta vez, porém, estava preparada. Até incrédula, já que me sabia prevenida (e estas re-leituras por vezes roubam-nos o encantamento).
Novamente magnífico. Na sua crueza, nos diálogos muitas vezes magnificamente maliciosos. Profundamente focalizado no demónio das relações; na forma como as pessoas se tocam e deixam tocar, da distância (ou da quase ausência dela). Sobre o estar sobre o fio da navalha, o Eu em relação com o Outro, a tentativa da apreensão, do aniquilamento de tudo o que difere (do que Eu quero e do que Eu desejo). Das máscaras que se assumem de cada vez que é declinado o verbo amar... das suas implicações. Acima de tudo, da não compreensão do que é amar o Outro na sua distância, exactamente porque distante e diferente de mim. E de como isso aniquila, ou, pelo menos, adormece inevitavelmente (de olhos bem fechados) o que deveria estar permanentemente acordado e alerta - a descoberta do Outro como sendo o diferente, o mistério velado que inebria e seduz.
Vasculhando os meus rascunhos de há um ano atrás, encontro estas impressões que agora reproduzo, porque a elas voltei neste novo visionamento:
Curiosas as diferenças quase opostas entre as duas personagens femininas. Por um lado a fotógrafa de estranhos, de rostos anónimos tornados familiares; por outro lado, a dançarina de striptease que se desnuda (expõe) perante estranhos. A primeira apreende/captura a estranheza; a última deixa-se apreender. Em ambos os casos, o estranho perante a captura do olho. A mensagem que permanece: o Outro escapa sempre à apreensão; e talvez por isso a dançarina só se desnude perante o estranho (ela só revela o nome, a identidade, no local da distância absoluta), porque a proximidade (a relação) é perigosa, aniquiladora da estranheza. E por isso mesmo ela escapa sempre à proximidade - deixa de amar no exacto momento em que lhe é exigida pertença. E aqueles que permanecem no "Perto Demais" (a fotógrafa e o dermatologista) terminam adormecidos, porque a coincidência adormece os sentidos.
E hoje passei o dia a ouvir isto :

and so it is
just like you said it would be
life goes easy on me
most of the time
and so it is
the shorter story
no love no glory
no hero in her skies
i can't take my eyes off of you
and so it is
just like you said it should be
we'll both forget the breeze
most of the time
and so it is
the colder water
the blower's daughter
the pupil in denial
i can't take my eyes off of you
did I say that I loathe you?
did I say that I want to
leave it all behind?
i can't take my mind off of you
my mind
'til I find somebody new

E agora um momento de publicidade da responsabilidade dos anunciantes locais - 2

Mais uma vez, uma proposta de visita à outra banda, para outro post delicioso (procurem Luther King Jr.)

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

Cheia de nadas... (continuação)

O músico Emanuel, o inquestionável ícone da música pimba, trouxe-nos aos sons dos nossos ouvidos a música “(…) nós pimba” que, em rima (factor muito importante quando se pretende transmitir oralmente e, quiçá, de geração em geração), transmite-nos uma acção/feito (verbo pimbar?!) que, doutra forma, era impossível traduzir.
O termo generalizou-se… e sem dúvida que traduz as vivências e realidades do nosso povo!
Por exemplo, enquanto um Wagner traduziu e fez sentir o exacerbado nacionalismo ariano com suas composições, nós também conseguimos sentir esse nacionalismo, na altura em que a Selecção jogava (o motivo futebol e que mais podia ser?), com a música “com uã força!” de Nelly Furtado!
E quem melhor que Quim Barreiros para descrever a gastronomia portuguesa?! “ O bacalhau quer alho!”, está tudo dito! Mistura perfeita e tipicamente portuguesa! Eça de Queirós, meticulosamente, descrevia-nos comidas requintadas…, mas tinha tempo e… não fazia letras para músicas!
“Na minha cama com ela”, Mónica Sintra, é uma canção reflecte como o princípio da hospitalidade, da honra e outros que estavam presentes nos heróis clássicos , ainda têm algum peso nos comportamentos actuais.
Apesar de vivermos numa sociedade materialista há, felizmente, outros valores que ainda se levantam e, na sua música, Ágata diz “podes ficar com a casa, com o carro (…), mas não fiques com ele!” .
Aculturação é uma característica nossa (responsáveis por dar ao mundo novos mundos…) e esse fenómeno está bem patente na música de Ruth Marlene, “Show de bola”.
“És tão boa” de Herman José; “És tão sensual” de Tony, são declarações simples e tão tão enfatizadas que convencem logo (de quê? isso não sei...).
Não posso deixar de referir o Tony Carreira! Tão tão sentimental que, numa festa de S. João, passei por um certo local (não havia outro percurso) e ouvi-o cantar “eu morro, eu morro, se te fores embora…”. Um verdadeiro herói romântico que arrasta multidões!
Quem disse que a Igreja não acompanha os tempos?! Os cânticos gregorianos já não dizem nada aos fiéis, a espiritualidade está mais em canções do género “põe a tua mão na mão do meu Senhor da Galileia, (…) aquele que acalma o mar”, padre Borga.

E, por agora, finalizo com a letra de uma música que diz “ Esquece tudo que te disse, pois é pura tolice…”

Fontes: rádios, televisão, comícios políticos, exposições, festas populares, feiras, cafés, esplanadas, etc. (sem qualquer esforço, captamos e assimilamos).
Cheia de nadas…
“Cheia de nadas e de Novembros” é uma expressão que li em qualquer lado e que adoptei para descrever, por vezes, o meu estado de espírito… é nesses momentos que tento entender o sentido da peça teatral na qual eu também participo. O nome da peça é Vida.
O teatro é uma das manifestações artísticas que melhor exprime o sistema mental de uma determinada comunidade. As fontes artísticas foram e são fundamentais para o estudo de qualquer historiador ou sociólogo!
Depois de ter lido “Teatro do Oprimido”, título de um texto informativo que vinha num suplemento de fim-de-semana de um jornal, veio-me à lembrança uma fase em que eu e mais alguém nos aventuramos a escrever e a ensaiar peças teatrais! Sem experiência, muita criatividade, alguma paciência e muita vontade foram alguns ingredientes por nós utilizados, e que resultaram numa espécie de estilo trágico-comédia! Marcante!
Quando tentávamos idealizar uma peça surgiam ideias absurdas, à Samuel Beckett! Contudo, ficávamo-nos pelo, no nosso entender, mais compreensível e aceitável.
Numa dessas conferências propus a ideia de fazermos um “Teatro do Pimba”! É claro que reacção foi: “já estás a abandalhar ”! Mas o certo é que, para mim, até tinha uma certa lógica… utilizaria músicas pimbas para “ilustrar” as representações de algumas realidades.
O termo pimba é, sem dúvida, um neologismo que, mais tarde ou mais cedo, irá constar no dicionário de Língua Portuguesa, pois “cataloga” uma manifestação artística da nossa sociedade!
Pimba parece-nos um som onomatopaico muito básico, mas o seu significado é de extrema profundidade (interpretem como quiserem, não me responsabilizo!). O termo Dadaísmo, hoje reconhecido como um movimento artística, também surgiu designar uma nova realidade... por que não também agora pimbaísmo?

quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

«A verdadeira vida está ausente.» *

"Mas nós estamos no mundo." (Levinas, Totalidade e Infinito, Edições 70)
Nasceu há 100 anos. Deixou-nos (desmesuradamente desejantes) há 10.
*(verso de Rimbaud que inaugura Totalidade e Infinito)

E agora um momento de publicidade da responsabilidade dos anunciantes locais.



Juntamente com a revista VISÃO desta semana acaba de sair uma antologia poética de Fernando Pessoa, organizada e prefaciada pelo magnífico Eduardo Lourenço. Ainda não a tenho (está encomendada) mas o responsável pela sua organização é-me suficiente para acreditar que vale a pena.
(Imagem de Almada Negreiros)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

Agora Escolha!

Em momento de descontração, uma visita a este sítio a fim de ler "Gerador Automático de Grandes Momentos de Literatura Erótica - versão beta". Absolutamente imperdível!

Em nossos momentos (muito) escuros...



"Não tenho nada contra eles, mas não queria nenhum aqui sentado ao pé de mim, porque sabe-se lá se aquilo pega..."
Frase que ainda rebate na minha mente, mesmo passados 3 dias. Foi-me dita por um aluno de 16 anos, acerca da homossexualidade e a propósito da sua suposta interdição aos candidatos ao sacerdócio. Mas não ficamos por aqui; um outro aluno (mesma aula, mesma turma), que me assegura que não tem qualquer problema em relação a "essas pessoas", considera que a Igreja tem mesmo que impôr limites, porque de outro modo, "qualquer dia admite ladrões lá dentro."
E eu pergunto-me como é possível, ainda hoje, termos gente tão nova com mentes tão envelhecidas. E logo de seguida lembro-me da forma como a maior parte de nós se refere à homossexualidade (e à diferença de géneros, e aos imigrantes...e...e...) e percebo como se perpetuam este género de imbecilidades. Somos todos muito esclarecidos, mas sempre com a certeza que nós não somos assim (e ainda bem); somos todos muito tolerantes, mas fazemos piadinhas, mudamos de passeio, olhamos de soslaio e apontamos o dedo. E depois? E depois, tenho miúdos que verbalizam desta forma aquilo que todos nós implicitamente lhes incutimos.
É claro que eu não me importo que sejam homossexuais, mas longe de mim. É claro que eles têm os mesmos direitos que eu, mas não os quero aqui ao meu lado. E é longe deles que eu continuo com sorrizinho de garoto(a) a dizer/gritar que sou tolerante, mas a contar ao pé do ouvido aquela piada que me contaram a semana passada. E deus me livre se algum dia tiver um filho assim!

(Imagem de Francis Picabia)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2006

(Em Parêntesis)

Agora reparo que a eles recorro, como se quisesse constantemente interromper o texto. E pergunto-me que posicionamento assumem na minha vida: será que fecho os parêntesis que nela vou abrindo?

domingo, 1 de janeiro de 2006

Obsessivamente Dogville III

Ainda sob o efeito de Dogville. E a fim de o exorcizar...
Capítulo 1:
De como o cenário deixou de ser importante.

(Quase) Sem cenário. A giz um(???) cão desenhado no chão, que se prolonga no esboço de uma cidade inconcluída e, portanto, por situar. Algures nos Estados Unidos, mas que bem podia ser "a quiet little town not far from here". Deste modo, as personagens adquirem um gigantismo que noutros cenários não teriam - a atenção do espectador está totalmente centrada nos rostos, nos corpos, nos gestos muitas vezes registados a vazio.
Capítulo 2:
Se Jesus Cristo tornado menino de Caeiro viesse parar a Dogville, não poderia sorrir nem brincar.

Num exercício de repetição (que de bom grado acolhemos), Lars Von Trier elege uma personagem feminina para a sua narrativa. Frágil e ingénua como as anteriores (Bess e Selma), perfeita vestal para o altar do sacrifício cinematográfico. Grace é a estrangeira que chega à cidade, carregando na bagagem única e exclusivamente a sua vulnerabilidade. A caminhada até Dogville é recompensada, após um período de experiência pela sua aparente aceitação, em que todos agradecem o facto de se encarregar de "fazer aquilo de que ninguém precisa". E o que começou por ser uma dádiva, acaba por lhe ser arrebatado, exigido, roubado. A cidade que lhe lambeu as feridas e se enroscou no calor da sua humanidade, começa lentamente a abocanhá-la.
Grace é a mulher que sofre na pele os desvarios da comunidade que a (des)acolheu. Porque é "a ilustração" perfeita da fragilidade da estranheza, também é mais facilmente desumanizada. Através do poder que sabem ter sobre a estrangeira, os habitantes desta Dogville, desta pequena cidade mais próxima de nós do que gostaríamos, (des)humanizam-se na tentativa de aniquilar a humanidade contida em Grace.

Capítulo 3:

O Beijo (de 30 dinheiros) de Tom Edison, ou de como ele a negou três vezes antes do cão latir.
Tom Edison é o Judas por excelência de Grace. Ele é o intelectual da cidade, aspirante a escritor(sonha tomar o pulso à cidade e perpetuá-lo através da escrita), aquele que coloca a comunidade constantemente sob a sua lupa de observador interessado, localizando-se (quase) sempre do exterior. Nunca se identifica com os restantes ou, por outra, não se quer ver identificado como parte integrante, como se a lâmpada incandescente que lança sob os seus vizinhos o torne cego relativamente a si próprio. E é quando Grace inadvertdamente (ou não) o situa na cidade - lhe aponta o medo de também ele ser humano - que ele decide entregá-la definitivamente. A traição de Tom não é repentina; ao longo de toda a narrativa ele a trai constantemente por colocar-se sempre como espectador, admitindo o seu amor (a sua preferência, o seu posicionamento) apenas na penumbra, no segredo da noite de Dogville. E é quando se acha também ele predador, ou melhor, quando através dos olhos dela, toma consciência de que também ele faz parte dos lobos que a abocanham, que ele decide entregá-la definitivamente - não aos membros da comunidade (isso ele já havia feito há muito), mas vendendo-a àquele que ele julga ditar a derradeira condenação.
Capítulo 4:
A queda de um anjo: A recusa do sacrifício
Num certo sentido, percebemos Grace como a antítese da tradição judaico-cristã. Pode ser vista como o Cristo que subiu à cidade para conhecer os humanos, porque queria provar da sua humanidade e, em última instância, sacrificar-se por ela. Vilipendiada, cobiçada, acorrentada, violentada por todos aqueles por quem havia fugido de casa, desafiando a autoridade de seu Pai. E é no reencontro com o Pai (The Big Man), que aqui assume um carácter dual ( ele é omnipotente, mas é também o demónio que a tenta no deserto: ofereço-te todo o poder - e que ao invés da narrativa das escrituras, ela aceita e dele faz uso) que Grace reconhece não poder deixar de responsabilizá-los pelas suas escolhas, não poder exigir mais de si do que exige aos outros. Portanto, recusa a crucificação final.
Se as anteriores mulheres criadas por Lars Von Trier - Bess no turbilhão da memória do toque do homem que sacralizou e Selma sapateando até ao patíbulo sacrificial do altar maternal - se deixam imolar em nome de quem amam, Grace não permite a repetição da condenação. Ao invés de se deixar sacrificar, é ela que ergue o punho justiceiro e atinge mortalmente o homem e a cidade que a traiu. Perde a inocência, ganha consciência de si, também ela humana e capaz de querer viver para além do outro que a aniquila. Grace desencadeia o Juízo Final, a purificação pelo fogo (do pó vieste, ao pó retornarás) onde o único poupado é, curiosamente, o cão gizado no chão - mas cujo latido perpassa todo o filme.