domingo, 19 de março de 2006
A Disciplina Amansada
Inicio a semana com o cansaço de quem esteve por uns dias numa sala num exercício intensivo e estranho, que misturou lavagem cerebral e respectivo adestramento. Senti-me, na verdade, uma heroína romântica, uma espia que foi levada para uma cave suja e escura (não foi o caso, mas podia), onde membros de uma qualquer organização (não tão) secreta tentam (por via de aliciamento e tortura) esvaziar-me das minhas mais profundas e secretas convicções.
Oferecem-nos doces, primeiro: chamam-nos de professores, de inteligentes, de esclarecidos. Com o pêlo (suficientemente??) amaciado, convidam-nos a confrontar situações, de raíz enviesadas para o resultado que já sabemos ser o esperado. É então que começa o verdadeiro jogo, que entretece os dias de suposta reflexão e clarificação: jogam-nos teses e argumentos/(falácias), gritam imparcialidade e justeza, jogam-nos teses e argumentos/(falácias), murmuram sobre a necessidade de leccionar desta forma, jogam-nos teses e argumentos/(falácias), dizem-nos o que é (e o que não é) filosofia, jogam-nos teses e argumentos/(falácias), alegam rigor científico, jogam-nos teses e argumentos/(falácias), declamam os conteúdos que devem ser irrelevantes, jogam-nos teses e argumentos/(falácias), rematam com Esta é a verdadeira via. Querem que repitamos à saída: crítica, analítica, crítica, analítica, crítica, analítica. Os murmúrios suspendem-se à porta do auditório, os olhos semicerrados pelo sol da tarde de sábado, o cheiro a terra molhada, o arco-íris prometendo trégua por algum tempo.
(Pintura de Basquiat)
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9 comentários:
Essa gente deve ser zurzida o mais possível. É a consolação que resta na luta contra o pensamento único, tarefa a realizar em sede filosófica!
Já fiquei a perceber o que os pensadores falam! Argumentos/falácias... argumentos/ falácias... melhores dias virão ...
Nem por isso, caro anónimo. Justamente porque a filosofia não pode ser reduzida a isso...
Um post que ontem à noite motivou uma conversa que mantive com um amigo meu que é filósofo...
e então?
não motivou um comentário, nem um, relacionado com o tema???
entrou por um ouvido e saiu por outro...
Caro Aristóteles:
Tens toda a razão. Mas a situação no Ensino Secundário está insustentável. Temos um exame que percorre apenas os conteúdos considerados importantes (leia-se filosóficos) pelo Centro para o Ensino de Filsofia. Neste momento, é incontornável leccionar com as duas pequenas bíblias certificadas por estes senhores (sob risco de os nossos alunos não conseguirem fazer o exame da disciplina). Num desses manuais, encontramos mesmo uma paródia que inclui um texto de Derrida, a que intitulam de "A Obscuridade Pedante". É evidente que escolho não leccionar as partir da má fé manifesta por exercícios deste tipo... Mas um aluno de 11ºano, que se depare com isto no seu manual de filosofia - que discernimento tem?
e depois andamos pelo País com Workshop's, onde se ensina aos professores o que deve ou não deve ser filosofia - a velha máxima de "Não devemos confundir filosofia com poesia e literatura". Esta é a situação do nosso ensino.
E eu fico com o dilema entre mãos: tenho que leccionar de acordo com as Orientações veiculadas pelo Ministério, que sei envenenadas. Tenho que leccionar a partir da má fé de quem apregoa que esta é a única forma de leccionar "imparcialmente" o que se chama de filosofia no secundário. Bolas para tudo isto. Nem tenho conseguido dormir...
Correcções ao texto anterior:
Onde se lê:
- "leccionar com as duas pequenas bíblias " deve ler-se "leccionar sem as duas pequenas bíblias";
- "Centro para o Ensino de Filsofia" deve ler-se "Centro para o Ensino de Filosofia";
- "não leccionar as partir " deve ler-se "não leccionar a partir";
Caro Everything... Não comentei a questão em si porque não domino minimamente o assunto.
Contudo, tenho a convicção (não sei porque raio) de que, caso dominasse, discordaria do meu amigo filósofo e da WOAB.
WOAB: em todo o caso, entendo a tua angústia, mas... bolas! Não dá mesmo para dormires uma horitas tranquila?...
Não dá para fazer alguma subversão?...
RPS:
Claro que dá. Mas... cada vez mais somos formatados para uma determinada direcção. Por isso dizia que, por enquanto, estamos ainda em tempos de tréguas. Contudo, o fututo afigura-se mais sombrio.
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