Nunca tinha sido uma criança de fervores religiosos, bem pelo contrário; frequentava a igreja por cláusulas contratuais relacionadas com obrigações familiares. Nada mais. O ritual dominical era um verdadeiro purgatório, com a excepção da parte final, que sempre lhe havia sabido a pouco, com uma única hóstia piedosamente depositada na língua. Nela se demorava, prolongando o sabor do que lhe diziam ser Cristo; acreditava gulosamente na fila para a obter, secreto deleite que terminava com duas ou três voltas entre a ponta da língua e o palato. Em tão tenra idade, a cerimónia da comunhão proporcionava-lhe a única experiência mística que alguma vez sentiria.
Ao atravessar os portões do convento, com a desculpa da visita a alguém, não imaginou o que estava prestes a suceder. Na verdade, aquelas mulheres cobertas assustavam-na, a roupa escura a pesar-lhe no olhar. A sala de visitas era sombria, decorada com paredes brancas e gélidas. Quase ao início, uma parede e uma janela gradeada dividiam a sala. Do lado de lá, as residentes; de cá os visitantes. Nada de tão dramático como à primeira vista lhe pareceu: a janela foi aberta de par em par e o gradeamento desapareceu momentaneamente. Só restava a parede de cal branca, a marcar a separação irredutível entre forasteiros e moradoras.
A conversa correu lenta, os minutos a ressoar como se de horas se tratassem na cal das paredes. Inquietava-se no banco, mordendo a língua para não interromper a conversa sussurrada entre a Mãe e a moça que lhe parecia ter só olhos e lábios. Até que aconteceu o milagre do pão. Não o de um homem que alimenta cinco mil com cinco pães. O milagre naquele dia aproximou-se silenciosamente da janela de murmúrio com um saco de plástico azul, que lhe foi oferecido. No seu interior, a preciosidade de aparas de hóstias, produzidas naquele local e distribuídas pelas várias igrejas da região. Explicaram-lhe que funcionava com uma prensa e que, portanto, a produção implicava sempre centenas, milhares de aparas de hóstias.
Saiu de lá com o saco azul cheio de aparas e com uma leve sensação de chamamento na língua. Se optasse por ali ficar, teria sempre milhares de aparas. Se tomasse o hábito e cobrisse o corpo pecador, poderia dar largas à gula. Alimentar-se de hóstias, passar os dias de mangas arregaçadas a prensar folhas e folhas de hóstias. Saiu a ponderar voltar e ficar, por amor às aparas, aquela orgia de aparas. Tirá-las à mão cheia e metê-las na boca, senti-las a desfazerem-se lentamente.
Passou-lhe o fervor à medida que o saco azul se esvaziou perante as suas mãos com cinco anos de idade cada uma. Fartou-se de aparas. E de hóstias. Foi o mais próximo que se sentiu de Deus.
Ao atravessar os portões do convento, com a desculpa da visita a alguém, não imaginou o que estava prestes a suceder. Na verdade, aquelas mulheres cobertas assustavam-na, a roupa escura a pesar-lhe no olhar. A sala de visitas era sombria, decorada com paredes brancas e gélidas. Quase ao início, uma parede e uma janela gradeada dividiam a sala. Do lado de lá, as residentes; de cá os visitantes. Nada de tão dramático como à primeira vista lhe pareceu: a janela foi aberta de par em par e o gradeamento desapareceu momentaneamente. Só restava a parede de cal branca, a marcar a separação irredutível entre forasteiros e moradoras.
A conversa correu lenta, os minutos a ressoar como se de horas se tratassem na cal das paredes. Inquietava-se no banco, mordendo a língua para não interromper a conversa sussurrada entre a Mãe e a moça que lhe parecia ter só olhos e lábios. Até que aconteceu o milagre do pão. Não o de um homem que alimenta cinco mil com cinco pães. O milagre naquele dia aproximou-se silenciosamente da janela de murmúrio com um saco de plástico azul, que lhe foi oferecido. No seu interior, a preciosidade de aparas de hóstias, produzidas naquele local e distribuídas pelas várias igrejas da região. Explicaram-lhe que funcionava com uma prensa e que, portanto, a produção implicava sempre centenas, milhares de aparas de hóstias.
Saiu de lá com o saco azul cheio de aparas e com uma leve sensação de chamamento na língua. Se optasse por ali ficar, teria sempre milhares de aparas. Se tomasse o hábito e cobrisse o corpo pecador, poderia dar largas à gula. Alimentar-se de hóstias, passar os dias de mangas arregaçadas a prensar folhas e folhas de hóstias. Saiu a ponderar voltar e ficar, por amor às aparas, aquela orgia de aparas. Tirá-las à mão cheia e metê-las na boca, senti-las a desfazerem-se lentamente.
Passou-lhe o fervor à medida que o saco azul se esvaziou perante as suas mãos com cinco anos de idade cada uma. Fartou-se de aparas. E de hóstias. Foi o mais próximo que se sentiu de Deus.
Pintura de Ignacio Lloret
*Da autoria de Ceridwen, que me arrancou ao desespero de não conseguir intitular o post
*Da autoria de Ceridwen, que me arrancou ao desespero de não conseguir intitular o post