Ainda sob o efeito de Dogville. E a fim de o exorcizar...
Capítulo 1:
De como o cenário deixou de ser importante.
(Quase) Sem cenário. A giz um(???) cão desenhado no chão, que se prolonga no esboço de uma cidade inconcluída e, portanto, por situar. Algures nos Estados Unidos, mas que bem podia ser "a quiet little town not far from here". Deste modo, as personagens adquirem um gigantismo que noutros cenários não teriam - a atenção do espectador está totalmente centrada nos rostos, nos corpos, nos gestos muitas vezes registados a vazio.
De como o cenário deixou de ser importante.
(Quase) Sem cenário. A giz um(???) cão desenhado no chão, que se prolonga no esboço de uma cidade inconcluída e, portanto, por situar. Algures nos Estados Unidos, mas que bem podia ser "a quiet little town not far from here". Deste modo, as personagens adquirem um gigantismo que noutros cenários não teriam - a atenção do espectador está totalmente centrada nos rostos, nos corpos, nos gestos muitas vezes registados a vazio.
Capítulo 2:
Se Jesus Cristo tornado menino de Caeiro viesse parar a Dogville, não poderia sorrir nem brincar.
Num exercício de repetição (que de bom grado acolhemos), Lars Von Trier elege uma personagem feminina para a sua narrativa. Frágil e ingénua como as anteriores (Bess e Selma), perfeita vestal para o altar do sacrifício cinematográfico. Grace é a estrangeira que chega à cidade, carregando na bagagem única e exclusivamente a sua vulnerabilidade. A caminhada até Dogville é recompensada, após um período de experiência pela sua aparente aceitação, em que todos agradecem o facto de se encarregar de "fazer aquilo de que ninguém precisa". E o que começou por ser uma dádiva, acaba por lhe ser arrebatado, exigido, roubado. A cidade que lhe lambeu as feridas e se enroscou no calor da sua humanidade, começa lentamente a abocanhá-la.
Grace é a mulher que sofre na pele os desvarios da comunidade que a (des)acolheu. Porque é "a ilustração" perfeita da fragilidade da estranheza, também é mais facilmente desumanizada. Através do poder que sabem ter sobre a estrangeira, os habitantes desta Dogville, desta pequena cidade mais próxima de nós do que gostaríamos, (des)humanizam-se na tentativa de aniquilar a humanidade contida em Grace.
Se Jesus Cristo tornado menino de Caeiro viesse parar a Dogville, não poderia sorrir nem brincar.
Num exercício de repetição (que de bom grado acolhemos), Lars Von Trier elege uma personagem feminina para a sua narrativa. Frágil e ingénua como as anteriores (Bess e Selma), perfeita vestal para o altar do sacrifício cinematográfico. Grace é a estrangeira que chega à cidade, carregando na bagagem única e exclusivamente a sua vulnerabilidade. A caminhada até Dogville é recompensada, após um período de experiência pela sua aparente aceitação, em que todos agradecem o facto de se encarregar de "fazer aquilo de que ninguém precisa". E o que começou por ser uma dádiva, acaba por lhe ser arrebatado, exigido, roubado. A cidade que lhe lambeu as feridas e se enroscou no calor da sua humanidade, começa lentamente a abocanhá-la.
Grace é a mulher que sofre na pele os desvarios da comunidade que a (des)acolheu. Porque é "a ilustração" perfeita da fragilidade da estranheza, também é mais facilmente desumanizada. Através do poder que sabem ter sobre a estrangeira, os habitantes desta Dogville, desta pequena cidade mais próxima de nós do que gostaríamos, (des)humanizam-se na tentativa de aniquilar a humanidade contida em Grace.
O Beijo (de 30 dinheiros) de Tom Edison, ou de como ele a negou três vezes antes do cão latir.
Tom Edison é o Judas por excelência de Grace. Ele é o intelectual da cidade, aspirante a escritor(sonha tomar o pulso à cidade e perpetuá-lo através da escrita), aquele que coloca a comunidade constantemente sob a sua lupa de observador interessado, localizando-se (quase) sempre do exterior. Nunca se identifica com os restantes ou, por outra, não se quer ver identificado como parte integrante, como se a lâmpada incandescente que lança sob os seus vizinhos o torne cego relativamente a si próprio. E é quando Grace inadvertdamente (ou não) o situa na cidade - lhe aponta o medo de também ele ser humano - que ele decide entregá-la definitivamente. A traição de Tom não é repentina; ao longo de toda a narrativa ele a trai constantemente por colocar-se sempre como espectador, admitindo o seu amor (a sua preferência, o seu posicionamento) apenas na penumbra, no segredo da noite de Dogville. E é quando se acha também ele predador, ou melhor, quando através dos olhos dela, toma consciência de que também ele faz parte dos lobos que a abocanham, que ele decide entregá-la definitivamente - não aos membros da comunidade (isso ele já havia feito há muito), mas vendendo-a àquele que ele julga ditar a derradeira condenação.
A queda de um anjo: A recusa do sacrifício
Num certo sentido, percebemos Grace como a antítese da tradição judaico-cristã. Pode ser vista como o Cristo que subiu à cidade para conhecer os humanos, porque queria provar da sua humanidade e, em última instância, sacrificar-se por ela. Vilipendiada, cobiçada, acorrentada, violentada por todos aqueles por quem havia fugido de casa, desafiando a autoridade de seu Pai. E é no reencontro com o Pai (The Big Man), que aqui assume um carácter dual ( ele é omnipotente, mas é também o demónio que a tenta no deserto: ofereço-te todo o poder - e que ao invés da narrativa das escrituras, ela aceita e dele faz uso) que Grace reconhece não poder deixar de responsabilizá-los pelas suas escolhas, não poder exigir mais de si do que exige aos outros. Portanto, recusa a crucificação final.
Se as anteriores mulheres criadas por Lars Von Trier - Bess no turbilhão da memória do toque do homem que sacralizou e Selma sapateando até ao patíbulo sacrificial do altar maternal - se deixam imolar em nome de quem amam, Grace não permite a repetição da condenação. Ao invés de se deixar sacrificar, é ela que ergue o punho justiceiro e atinge mortalmente o homem e a cidade que a traiu. Perde a inocência, ganha consciência de si, também ela humana e capaz de querer viver para além do outro que a aniquila. Grace desencadeia o Juízo Final, a purificação pelo fogo (do pó vieste, ao pó retornarás) onde o único poupado é, curiosamente, o cão gizado no chão - mas cujo latido perpassa todo o filme.
Num certo sentido, percebemos Grace como a antítese da tradição judaico-cristã. Pode ser vista como o Cristo que subiu à cidade para conhecer os humanos, porque queria provar da sua humanidade e, em última instância, sacrificar-se por ela. Vilipendiada, cobiçada, acorrentada, violentada por todos aqueles por quem havia fugido de casa, desafiando a autoridade de seu Pai. E é no reencontro com o Pai (The Big Man), que aqui assume um carácter dual ( ele é omnipotente, mas é também o demónio que a tenta no deserto: ofereço-te todo o poder - e que ao invés da narrativa das escrituras, ela aceita e dele faz uso) que Grace reconhece não poder deixar de responsabilizá-los pelas suas escolhas, não poder exigir mais de si do que exige aos outros. Portanto, recusa a crucificação final.
Se as anteriores mulheres criadas por Lars Von Trier - Bess no turbilhão da memória do toque do homem que sacralizou e Selma sapateando até ao patíbulo sacrificial do altar maternal - se deixam imolar em nome de quem amam, Grace não permite a repetição da condenação. Ao invés de se deixar sacrificar, é ela que ergue o punho justiceiro e atinge mortalmente o homem e a cidade que a traiu. Perde a inocência, ganha consciência de si, também ela humana e capaz de querer viver para além do outro que a aniquila. Grace desencadeia o Juízo Final, a purificação pelo fogo (do pó vieste, ao pó retornarás) onde o único poupado é, curiosamente, o cão gizado no chão - mas cujo latido perpassa todo o filme.
8 comentários:
Estou a ver que muita gente escolheu as primeiras horas do 1º de Janeiro para blogar :)
Um dos filmes da minha vida defenitivamente! Adoro a maneira e a brutalidade com que ele descreve a natureza humana! Somos uns animais! Aproveitámos sempre de quem é fraco do que nós e somos egoístas ao ponto de pensarmos sempre mais em nós no que dos outros! Revoltante e desconcertante!
Imagens cortantes...
Grande post sobre um grande e perturbante filme!
não vi o filme.. mas aconselho vivamente o SAW (jogos mortais) tanto o I como o II
Não conheço. Mas obrigada pela dica.
a mente humana é tremendamente perversa, nada de ver o II sem ver o I senão há uma enorme confusão. se não conseguires tenho os dois
Ok. Se calhar na minha próxima ida aí para cumprir o meu direito cívico.
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