Era um tipo com sorte. Pouco inteligente, nem percebia muito bem como estava a leccionar Português. Em abono da verdade, não percebia ele nem ninguém que trocasse mais do que três frases com ele.
Não conhecia Bernardo Soares - "Bernardo Soares, Bernardo Soares... Não! Temos que dar Cesário Verde, Antero de Quental, mas Bernardo Soares... esse não." Para além disso, dos Maias do Eça só conseguia dizer: "Como é que eu hei-de explicar.... Os Maias, os Maias - falta-me a palavra - são... são espectaculares. E aquele Carlos!" Ao que lhe diziam (não sem água no bico): "Ai sim? E a fantástica Miss Sara?" E aqui o olhar perdia-se, a tentar buscar essa personagem misteriosa de que ouvia falar agora pela primeira vez...
Tinha um ar enfezado, pernas arqueadas que lhe davam um ar patusco. Pés enormes, face ao resto do corpo - ou pelo menos, sapatos enormes (que os pés nunca lhe foram vistos). O cabelo, ralo nas têmporas, causava-lhe o seu maior desgosto (público, que outros devia ter mais recônditos), pelo que andava a investigar a resolução do problema... se calhar, implantes.
Apesar de tudo, na verdade era sagaz. Fazia render este seu ar de patinho feio (que nunca chegará a cisne); apelava à piedade e, com isso, lá ia conseguindo safar-se mais ou menos. Ou seja, quando o substimavam, era capital para ele. Assim, lá ia fazendo o número dos parvos, que de vez em quando até tinha sorte.
Estava rodeado por mulheres que o viam como aquele coitadinho que anda sempre sozinho. E ele sorria perante a ingenuidade delas, por acharem que era quase um irmão mais novo. A ele, o que interessava era estar por perto... que o achassem idiota, que entretanto tratava do resto. E quando alguém dizia: "Esse é mais esperto que todos nós ", a resposta invariável "Ah, coitado! Ele é tão solitário. Na verdade, é um querido." E ele sorria e fazia olhos de carneiro mal morto, esfregando mentalmente as mãos...
As deixas de engate eram hilariantes: "Ai é? Estás na aeróbica? Sabes, então se calhar, também entro." Deixava qualquer uma perplexa, mas lá ia andando.
Certo dia confessou-me: "Sabes? Tenho raiva de mim mesmo. Adoro mulheres. Não posso estar muito próximo... é o que é. Eu sei que tenho namorada lá na terra, mas, não sei... Não consigo controlar-me. Eu quero resistir, mas depois não resisto. É um paradoxo! Tu sabes o que é um paradoxo? É uma coisa que é e não é ao mesmo tempo."
( imagem de Marc Chagal)