"O maior processo do século começa com um réu fantasma. Ela quis ver com os próprios olhos o único criminoso de guerra nazi sobrevivente face aos juízes de Israel, e é isto! O homem é insignificante. (...)
Afinal, não passa de um cabrito encurralado, a balir. Perturbada, apercebe-se que o medo vem dela própria. Da banalidade de um processo de justiça quando estava à espera da grandiosidade do teatro antigo com o castigo solene do culpado. Tem medo da banalidade do homem, da banalidade do réu, da do procurador de Israel, da do público, e até das pobres testemunhas.
Teme sobretudo descobrir o pior de tudo: a banalidade do próprio mal, uma vez que o mal teve que passar por aquele homenzinho apagado. (...), não duvida, nem por um instante, da culpabilidade do réu. Mas também não duvida, nem por um instante, de que diante dela não está o verdadeiro culpado.
O verdadeiro culpado está em todos. Sem excepção."
(Catherine Clément, O Último Encontro)
O anti-semitismo não começou com o Partido Nazi de Hitler, nem tão pouco circunscrito a um País. A barbárie permitiu-se, porque teve todo um berço de ouro, de séculos de cultivo de ódios além fronteiras e que sobreviveram ao holocausto dos campos nazis; Adorno fala-nos sobre isso, quando apresenta o anti-semitismo vivo e saudável nos EUA, nos anos seguintes à 2ª Guerra Mundial.
Se evoco tudo isto, é porque parece-me que sentimo-nos muito tranquilos com a possibilidade de apontarmos os outros, como se tocássemos exactamente na ferida, esquecendo que foi provocada muito antes e que foram muitos mais os punhais do que aqueles que são acusados. Acima de tudo, tendemos a esquecer o peso que os ódios mais comezinhos têm a longo prazo. O que começa por aversão, ao longo dos tempos termina em ódio, desejo de extermínio, a face do mal cada vez mais visível e extensa... Até ao desferir do golpe, até ao horror imediato - logo esquecido, porque placidamente continuamos a alimentar velhos (e novos) preconceitos.
Permitimo-nos diariamente a pequenos ódios, raivas e amarguras, esquecendo que podem crescer sobremaneira...
Há uns anos atrás, através de um documentário transmitido pela 2, soube que não se ouvem as composições de Wagner em Israel; na altura, não deixei de pensar que perdiam por não separarem o homem do músico, por não usufruírem do que de bom conseguiram escrever aquelas mãos numa pauta de cinco linhas. Com Heidegger, a história repete-se; o homem inscrito no partido nazi, o reitor que redigiu elogios ao Führer precede muitas vezes o filósofo do pensamento vagabundo.
Nos tempos que correm, de mão na boca, desde que veio à tona o passado de Günter Grass. Todos os que nunca saíram da segurança das suas casas e dos seus redutos morais, apressam-se a alegar a legitimidade de lhe retirar o direito de escrever o que escreve, como escreve e porque escreve.
Mais uma vez, a história repete-se; na cegueira de quem se esconde no conforto de nunca estar confrontado com um verdadeiro dilema, de nunca ter sido confrontado com a escolha, com uma tomada de posição. Mas uma tomada de posição que não se esbata nas letras de uma coluna de opinião, que se arruma assim que se fecha o jornal. Ou na página do blogue.
(O título do post também pertence ao Último Encontro de Clément).