«Ela tinha descoberto a prodigiosa faculdade de expressão das mãos humanas, mil vezes mãos reveladoras que os olhos, porque elas não são, de modo algum, hábeis a mentir, deixam-se surpreender a cada minuto, ocupadas como estão com mil cuidados materiais, ao passo que o olhar, sentinela infatigável, vigia nas ameias das pálpebras... As mãos do pai, primeiro, pousadas nos joelhos, imóveis todas as noites, quase terríveis à luz de uma única lâmpada que faz dançar todas as sombras, com um punho cujo osso parece prestes a romper a pele, e aquele tufo de pêlos em cada articulação dos dedos enormes. As mãos do avô, também, que ela viu cruzadas sobre o ventre, ao fundo do quarto, um dia de verão, persianas fechadas, numa bruma de moscas invisíveis... As mãos destes jovens irmãos, tão depressa tornadas mãos de operários, mãos de homens. E ainda as mãos das mulheres da quinta, que cheiram a leite ácido (...). As da Madame bem mais pequenas, as pontas dos dedos picadas com pontos negros, da agulha... Mãos laboriosas, mãos trabalhadoras, que o repouso torna ridículas. E deste ridículo os pobres têm alguma consciência, porque furtam de propósito ao olhar as suas mãos desocupadas. Diz-se do trabalhador ao domingo que "não sabe que fazer às mãos", brincadeira cruel, pois ele não deve o pão de cada dia senão ao trabalho destas criadas».
G. Bernanos, La Nouvelle Histoire de Mouchette
(Adam Martinakis)
É um texto escrito na primeira metade do século XX por um autor francês, mas que me parece cada vez mais próximo do País que temos nesta primeira metade do século XXI. Será completamente incompreensível aos olhos de Passos Coelho, Portas, Gaspar ou Cavaco. Porque as mãos destes homens apenas se ocupam em tirar das mãos dos outros a dignidade do seu trabalho. E repetem-lhes que aquelas mãos têm vivido acima das possibilidades.
(a tradução do excerto é da autoria do meu querido professor João Maria André, que o trouxe para uma das suas generosas conferências, e que reencontrei agora nos papéis que guardo.)