segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Uma história de fome

Há alguns dias atrás, li algures sobre o resultado de um estudo efectuado sobre as refeições servidas aos doentes, nos hospitais. O estudo concluía que a ementa é manifestamente inadequada e que a tendência é a de os pacientes emagrecerem. Pelos vistos, muitas das nossas unidades hospitalares servem sem olhar a quem e temos pacientes com dificuldade em deglutir, a lidar com a necessidade de o fazer para conseguirem alimento. Mais, recolhem-se os tabuleiros sem a preocupação sequer de saber porque não foi tocado ou porque a maior parte da comida continua intacta. E, portanto, as pessoas emagrecem. Este foi o grosso da notícia que li. Não fiquei de todo chocada. Só fiquei horrorizada por perceber que o problema estende-se pela maior parte de unidades hospitalares. Há dois meses atrás, frequentei por força maior uma unidade hospitalar. Alguém querido jazia numa daquelas camas de enfermaria e tornei-me visita habitual. No nosso País, não basta alguém estar a morrer de dores; não basta alguém usar aquela bata horrorosa e descansar nos lençóis que jazem sobre as camas articuladas. Ou os sofás escuros, que constituem a sala dos pacientes. Ou deslocar-se lentamente à casa de banho, arrastando atrás de si o soro e os analgésicos que mantêm a dor temporariamente arredada. Não basta estar a morrer. E a minha amiga estava. Apesar de tudo, quando lá entrava e entregava o meu cartão de identificação, queria acreditar que, por um sortilégio qualquer, a encontraria melhor do que nos dias anteriores. Houve dias desses. Claro que, lá para o final, já nem isso conseguia. Eu sabia que estava perto do fim; ela também. Nunca o admitimos claramente. A minha amiga morria de cancro nos intestinos. A minha amiga tinha dores horríveis e não conseguia manter os alimentos no estômago durante muito tempo. Comia vagarosamente e poucas colheres de cada vez. E de todas as vezes que lá estive, as refeições eram intragáveis. Naquela enfermaria, povoada por células devoradoras de gente, servia-se peixe frito ao almoço e jardineira gordurosa ao jantar. Naquela unidade de gente cansada, servia-se macarrão com carne e molho de tomate para quem não conseguia aguentar duas colheres seguidas de gelatina. E quando reclamamos da ementa, explicaram-nos enfadadamente que o hospital tinha uma única ementa para todos os andares e enfermarias e que por essa mesma razão, a comida podia parecer inadequada. Não parecia. Era efectiva e escandalosamente inadequada. Entrei sempre naquele hospital com sacos. Com gelatinas, com frutas e gelados, que o frio acalma o estômago de quem arde por dentro. A minha amiga tinha a família e os amigos, que transformaram o carinho em alimento. Muitos não têm essa sorte. E definham não só de dor, mas também de fome.

6 comentários:

Anónimo disse...

nem sei o que diga... mas fiquei com uma imagem tão triste...Nunca pensei... bjs.

Sancho Gomes disse...

Um beijo, porque não adianta dizer mais nada!

Anónimo disse...

este post devia estar editado num jornal de referência!

Isobel disse...

Só tenho uma coisa a dizer: impressionante! E a comida no hospital é intragável em todos os aspectos, qualquer pessoa emagrece só de olhar para ela..
Estive no hospital por razões ligeiras e normais a toda a gente mas lembro-me de, na altura, ficar escandalizada com o facto de me darem peixe carbonizado e frango cheio de gordura, pior que a comida que dou ao meu cão. Durante uma semana, comi soro e emagreci 10 kg. Quem lá tem de ficar mais tempo só pode mesmo contar com a família e os amigos. E quem fica para apoiar, como tu ficaste, abençoa quem sofre e é abençoado porque não há nada mais precioso que ter ao nosso lado alguém que dá tudo por nós.

Woman Once a Bird disse...

Pois é Isobel, mas temo que tudo piore, a partir daqui. Com as voltas que o SNS tem dado, com a privatização de alguns hospitais, com a debanda dos melhores clínicos para os privados... Parece-me que o problema, para quem não consegue pagar uma diária de 300 euros (excluíndo todo a assistência médica) vai ficar bem mais bicudo. Enterramo-nos cada vez mais no salve-se quem puder. E, cada vez mais, ter dinheiro é sinónimo de saúde!

rps disse...

Só quero dizer que li este post.

Não há nada mais a dizer, excepto subscrever o comment do amigo Everything.