Tinha esperança numa promessa que nunca foi realmente feita, diz a certa altura April Wheeler (Kate Winslet) perante os despojos dos seus sonhos.
Saio do cinema ligeiramente irritada e profundamente incomodada com o filme que escolhi ver. Irritada pelos adultos adolescentes que povoam as salas de cinema e não se coibem em partilhar com estranhos os seus risinhos e comentários perfeitamente idiotas enquanto aguardam impacientemente pelo fim. E as crianças? Onde andam as crianças? perguntam em alta voz, como se fosse um comentário brilhante. E se de repente Kate Winslet as olhasse nos olhos e lhes dissesse: porra para as crianças, ainda não percebeste? E porra para ti, que te dás ao luxo de comprar um bilhete e sentar esse rabo de ginásio enquanto me esfalfo para que ponderes sobre o seguinte: a tua existência é povoada por um vazio desesperante (hopeless). Certamente as criaturas calar-se-iam perante a ousadia. Mas a Kate permaneceu onde era esperado, a fazer o que lhe competia e eu tentei concentrar-me apenas nela (personagem): na projecção de si que desfiou ao longo da narrativa, na esperança de fuga sustentada por aquele homem que havia considerado a pessoa mais interessante que havia conhecido e que entretanto havia entrado - e ela com ele - na norma.
A personagem de Kate é interessantíssima; uma mulher que desafia o seu tempo (anos 50) e propõe-se a ser o sustento da casa para dar hipótese ao marido para se encontrar e saber o que realmente quer ser. Parece suspirar ao longo da narrativa o célebre trecho inicial da Tabacaria
Eu não sou nada.
(...)
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(esqueçamos, por enquanto, Nunca serei nada/Não posso querer ser nada).
A esperança de todos os sonhos do mundo em mim, é transferida para o amante, inebriada pelo desejo de escapatória a dois. Termina no dia em que ele, apanhado pela normalidade dos dias foge ao sonho e a acusa de ser pouco mulher. E na narrativa, a palavra sonho/desejo é gradualmente substituida por infantilidade/loucura/estado febril.
Ele recupera a capacidade mentir muito bem (todos nós reconhecemos a verdade, apenas aprendemos a mentir muito bem, diz-lhe a determinada altura) e ela percebe que não pode querer ser nada. Tem que ser alguma coisa, dentro da norma pré-estabelecida (por quem? por todos os que apesar de reconhecerem a verdade - ou pelo menos parte dela - aprendem a mentir muito bem) e aprender também ela a fazê-lo, a considerar interessante o que nunca o foi, a afirmar amor quando já não o tem. E por momentos ela fá-lo, por instantes deixa-se inundar pela normalidade e pela máscara da realidade que trai a verdade (o vazio desesperante) para só então dar, definitivamente, o salto*.
*A certa altura uma personagem secundária mas, a meu ver, fundamental (doido, pois claro) refere que muitos conseguem perceber o vazio, mas muito poucos conseguem alcançar que este é absolutamente desesperançado.
9 comentários:
Obrigado por esta sinopse tão inteligente.
Viu o filme?
Ainda bem que o escolheste ver, se não, não teríamos esta prosa tão tão cativante e, sim - Senhor 1º comentador - tão inteligente!
Woman, tens que ver o "The Reader" também protagonizado pela extraordinária Kate e pelo magnífico Ralph Fiennes. O filme de Stephen Daldry (realizador do estupendo "As Horas") é, na minha modesta opinião, melhor filme que este Revolutionary Road.
beijocas
Vi a apresentação e fiquei com imensa vontade de o ver. Espero que chegue rapidamente. E Blue... nem que fosse só pelo Ralph...
Dionísio e Marta:
Impõe-se um agradecimento pela vossa generosidade. :)
Excelente.
O ser e o tempo (madrasto).
Obrigada! Fiquei cheia de vontade de ver o filme!
Não Woman, ainda não vi o filme, estou em regime de leituras forçadas. Mas fiquei com muita vontade de o fazer depois do seu post.
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