segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O Evangelho segundo Clarice*

"No pequeno parque de diversões do Jardim Zoológico esperou meditativa na fila (...) pela sua vez de se sentar no carro da montanha-russa.
(...) A brisa arrepiou-lhe os cabelo da nuca, ela estremeceu recusando, em tentação recusando, sempre tão mais fácil amar.
Mas de repente foi aquele vôo de vísceras, aquela parada de coração que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava no nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo automaticamente alegre - (...) - seu olhar ferido pela grande surpresa, (...), a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando, faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta. Quantos minutos? os minutos de um grito prolongado de trem na curva, e a alegria de um novo mergulho no ar insultando-a como um pontapé, ela dançando descompassada ao vento, dançando apressada, quisesse ou não quisesse o corpo sacudia-se como o de quem ri, aquela sensação de morte às gargalhadas, morte sem aviso de quem não rasgou antes os papéis da gaveta, não a morte dos outros, a sua, sempre a sua. Ela que poderia ter aproveitado o grito dos outros para dar seu urro de lamento, ela se esqueceu, ela só teve espanto."
Clarice Lispector, Laços de Família


*Tivesse eu acesso a todos eles...

4 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

Estive a ler este belo texto de uma grande pensador, com a cabeça, português, o Eduardo Prado Coelho, colocado pelo Manuel do blog Coisas do Arco da Velha:

(Na altura do caso Gisberta)

"«Um crime inesperado surgiu nos jornais: um certo número de jovens das Oficinas de S. José, no Porto [...] acabou por reconhecer que tinha havido um crime [...] Que nos impressiona nestes factos? A aparente indiferença aos aspectos éticos dos problemas [...] Mas, quanto a mim, há um terceiro factor a ter em conta: a questão da música (e do corpo dançado). As festas, com grupos rock que provocam um exacerbamento dos sentidos e o mergulhar numa experiência colectiva de tipo oceânico, em que a divisão entre o eu e o outro se desvanece: a indiferença perante o risco de morrer (que se revela nos jovens adolescentes das favelas brasileiras), o modo como se organizam em gangs, tudo isto multiplica as “cidades de deus” de que falava o filme de Fernando Meirelles. Ora as discotecas, com a sua violência nocturna, são pequenas festas deste tipo em que se mergulha todos os dias. Há uma pergunta que nos atravessa e horroriza: como foi possível ir tão longe na experiência do vazio? Uma das respostas parece-me óbvia: desesteticizando a arte que se transforma em mero ambiente aquático onde a identidade se esbate.»

Por estas e por outras é que todos os meus posts enaltecem a superioridade dos portugueses, que são invejados por todos, e que inventaram tudo o que há no mundo.

Punk never rust!!!

Blueminerva disse...

Para mim, que não conheço a obra de Clarice Lispector, este excerto é um excelente aperitivo. Aguçou-me a curiosidade. É mais um artigo a adicionar à lista de compras numa próxima visita à fnac.

beijocas

Sancho Gomes disse...

Vou iniciar a leitura do "Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres". Com tanto aguçar, prometo que serei exigente...

Woman Once a Bird disse...

Procurei na Leitura. Está publicado pela Relógio D'Água. Nunca o vi à venda. Entretanto, quero ver se encontro A Maçã no Escuro.