quarta-feira, 22 de março de 2006

Tapar os ouvidos com as mãos.


Certas cadências não se esquecem. Ficam no canto do ouvido, em suaves murmúrios, abafados pelos gritos diários do carro que passa, da televisão ligada, dos olhos que lêem em silêncio. São cadências latentes, pulsantes que despertam na suspensão da usura dos dias.
Sai a correr para o Hall do Hospital, tem que dar lugar a quem quer subir. Pára ao ouvir a voz que a chama. Viaja imediatamente - ouve agora mentalmente Eduardo Lourenço, numa entrevista, dizer que nos apaixonamos principalmente pela voz...
A voz continua a dizer-lhe. Balbucia respostas (paragem cerebral em curso) e a voz continua e nem consegue processar. Tenta dizer uma graça, conta da gata - a que restou, que continua loura - e a voz confunde-se com o olho que a ouve atentamente.
"Sabes onde estou, passa por lá para tomarmos café." Ao mesmo tempo que diz que sim com os lábios, os olhos sabem que não. Aquela voz é perigosa, mesmo quando em silêncio (principalmente quando em silêncio, na rouquidão do quase murmúrio).
(Fotografia de Man Ray

5 comentários:

salomé disse...

Desculpa este "não-comentário" mas não queria deixar de te dizer que o texto está fantástico. E sim... agora que "falas", o E.L. é bem capaz de ter razão.

feniana disse...

estou capaz de te dizer que o teu texto é mais belo do que nefertiti!

Woman Once a Bird disse...

Salomé e Feniana:
Muito obrigada pelos comentários. Por mim falo; as pessoas chamam-me a atenção por determinadas características: as mãos, os olhos...
A que mais me marca é mesmo a voz, se calhar porque mesmo com os olhos fechados ela persiste no ouvido.

Nefertiti disse...

Nos meus sonhos gastos e cansados/ percebi/ nas harpas celtas/ e nas cítaras helénicas/ uma estranha voz: amensagem hiperbórea!" Belo texto amiga. bjinhos

Dirim disse...

Sim, está lindo, e já to tinha dito... e sim, acho que devias responder e ir tomar café com a voz - e com o resto que a acompanha... sobretudo com o resto que a acompanha...