sábado, 12 de março de 2011

Nojo

«O que vigora hoje nas oligarquias é o esbanjamento em que vivem os filhos dos magistrados; aos filhos dos desfavorecidos só lhes resta entregarem-se a trabalhos árduos e fatigantes (mesmo que sejam mais ambiciosos e capazes de se lançar em reformas). 
Mesmo nas democracias que se presumem as mais representativas das massas populares, acaba por acontecer o contrário do que é mais adequado ao interesse comum.»
Aristóteles, Política, 1310a 10-35

Trabalho há cerca de 10 anos. Estive um ano desempregada, um ano desesperante em que a minha auto-estima era praticamente inexistente. Já candidata a um curso de mestrado em Coimbra, na minha área, fui chamada para uma substituição. Na verdade, fazia malas para regressar a Coimbra, já que a candidatura havia sido aceite e apenas faltava formalizar a matrícula. As malas serviram para outro sítio que não Coimbra. Não hesitei e ainda bem. 
Eu sou das que teve sorte.Um ano depois, quem ingressou na carreira já não a teve. Muito menos nos anos subsequentes. Tenho amigas e amigos que, não sendo da minha área, não tiveram a sorte que eu tive. Trabalham menos? Mentira. Trabalharam e trabalham tanto ou mais. Apenas estava no sítio certo à hora certa.
Por tudo isto tenho imensa dificuldade em entender os discursos que por todo o lado propagam. Temos quase duas décadas de gente cujo futuro está absolutamente hipotecado (e nem falo dos que ainda estão a preparar-se para a idade adulta). 
Somos governados por uma corja que não entende a política como serviço público que se escuda numa crise internacional para nos colocar a corda no pescoço. E as vozes mais ferozes não vociferam contra este estado de coisas. Queixam-se dos que reclamam. Que são preguiçosos. Que não se fizeram à vida. Que são uns privilegiados de barriga cheia que esperam viver às custas do Estado. A maior parte destas vozes não tem um ordenado mínimo ou um emprego precário (pelo menos não no sentido em que a maioria dos que hoje se manifestam tem). Estas vozes têm salário certo no final do mês, segurança social assegurada e a quase certeza de que no próximo ano o emprego continuará lá. Estas vozes esquecem que a nossa validação passa pelo trabalho que temos (ou não temos) e porque nunca lá estiveram ou então esqueceram, não conseguem ser suficientemente humanos para perceber o quão terrível uma situação de desemprego ou de precariedade pode ser para a auto-estima de cada um. 
A maior parte destas vozes ouve e lê a lírica de "Parva que sou" e finge não compreender que a parvoeira não está em estudar, mas sim em aceitar que um País permita que a entidade empregadora abuse dos/das seus/suas empregados/as para cegamente lucrar. Em aceitar que um País pague aos gestores o que paga, os mesmos que vociferam que o salário mínimo é demasiado alto (o Jools tem razão quando o diz) ou que os despedimentos devem ser flexibilizados, ou que indemnizações de miséria devem ser ainda mais miseráveis. 
É por tudo isto que a Ana Bacalhau canta que somos todos/as parvos/as. Porque aceitamos que quem nos governa feche os olhos à vergonha que é este Estado Social em que muita gente paga para trabalhar na esperança de um dia vir a ser pago. Aceitamos que a crise seja paga por quem menos pode e que os que mais poderiam fazer continuem como se deste País não fizessem parte. Somos parvos/as quando ouvimos placidamente o Sócrates no Parlamento, com a mesma cara de pau com que diz que é engenheiro, a dizer que as suas políticas reduziram o número de falsos recibos verdes, quando é o próprio Estado a contratar desta forma. Nojo, muito nojo!
Mas não. As vozes bem pensantes e instaladas discordam moderadamente em relação a tudo isto. A sua verdadeira indignação é dirigida para os/as escravos/as, os/as que se revoltam contra este País miserável a que estamos reduzidos/as - não por falta de dinheiro, mas por falta de capital verdadeiramente humano, que saiba o que é ser Pessoa e que ainda seja capaz de ver no rosto do/a outro/a um Ser Humano e não apenas uma forma de aumentar o seu capital ou os seus privilégios.
Na verdade, a lírica dos Deolinda é até demasiado branda com este País. 

Gravura de Paula Rego

1 comentário:

Ceridwen disse...

Exatamente.