segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Da arte de ser laçado

Usava gravata como quem bebe um copo de água. Não era um uso importante. Simplesmente todos os dias da sua vida, desde os 18 anos, saíra de gravata ao pescoço e nem mesmo quando as gravatas caíram em desuso, se lembrou de as deixar de usar.
No ano em que mudou de departamento, comprou uma nova para juntar às demais. Não era muito vistosa, era até discreta, mas decidiu estreá-la no primeiro dia de trabalho no novo local, em jeito de sorte. 
O novo departamento não era muito grande; era até mediano, mas como os seus funcionários nunca haviam trabalhado nem sequer haviam espreitado outro departamento, julgavam que aquele departamento era o maior e o mais importante entre todos os departamentos. E, para o diferenciarem dos restantes decidiram, mais ou menos em conjunto, que aquele departamento usaria laços em vez de gravatas. Esta decisão era uma não decisão, porque na verdade ninguém conversou sobre isto. Apenas começaram a usar laços e os restantes acharam que o adereço realmente combinava com os bigodes retorcidos de gente séria. E portanto, na loja em frente ao departamento, esgotaram-se os laços, porque todos quiseram parecer mais sérios que nos outros departamentos.
Depois dos laços, os funcionários acharam que seria interessante colocar espelhos por todo o lado, para que pudessem a qualquer hora admirar os laços que os tornavam tão distintos.
Depois dos espelhos, alguém teve a ideia de que seria interessante organizar reuniões semanais para conversarem sobre as diversas cores e feitios que os laços podem ter. Desenvolveram-se grandes solilóquios em que alguns funcionários mais entusiasmados contemplavam-se ao espelho enquanto peroravam sobre a beleza do seu laço.

Ora, foi exactamente a este departamento que chegou com a sua gravata nova, discreta. E dia após dia, naturalmente, continuou a usar as suas gravatas como quem usa um laço. Isto não seria um problema em qualquer outro departamento, menos naquele. Primeiro, porque o departamento estava habituado a uma determinada estrutura. A distribuição do material naquele departamento sempre foi muito complicada, porque todos queriam lapiseiras, mas alguns tinham que ficar também com lápis. E, pensavam, o homem da gravata também tinha direito a escolher e poderia querer também lapiseiras em vez de lápis. Mas o homem da gravata chegou e não disse nada, nem lápis nem lapiseira e os outros ficaram desconfiados, por ele ser assim tão calado. Mais a mais, não conseguiam deixar de olhar para a gravata, muito comprida, a cair-lhe no peito. 
Primeiro mexeram-se nas cadeiras, incomodados. Depois, lentamente, quando o homem da gravata estava alheado das conversas e concentrado no trabalho, começaram a bichanar sobre as gravatas do homem.
Onde já se viu, diziam, aparecer assim neste departamento, sem laço, quando já se sabe que o nosso departamento é o melhor por causa dos laços. Alguns mais distraídos não tinham pensado mais na gravata, mas, porque nos departamentos é preciso arranjar com que os funcionários se entretenham, começaram a ser cada vez mais os que se juntavam no corredor a bilhardar sobre a gravata do novo funcionário. A cusquice foi de tal ordem que chegou  aos ouvidos do chefe do departamento, que não sendo propriamente um amante de laços, entendia que se a maioria os queria, então a maioria devia usá-los. Assim, preocupado com os funcionários incomodados com a gravata, e que por causa disso já não conseguiam trabalhar em condições, decidiu admoestar o funcionário das gravatas , explicando-lhe que do uso dos laços dependia o prestígio de todo o departamento.
O funcionário engravatado não se deixou laçar; não porque gostasse por aí além das gravatas, ou porque detestasse os laços. O que ele não suportava é que confundissem a história dos homens laçados com a competência do departamento, o que ele não gostava é que tentassem tolher-lhe o direito de escolher entre um laço e uma gravata. 
A polémica acabou por esmorecer, não sem antes alguns funcionários que até achavam piada ao homem da gravata se terem afastado dele logo que souberam que o chefe havia manifestado desagrado. Com medo de retaliações, durante uns tempos trouxeram uns laços ainda maiores, para que ficasse bem claro que eram homens genuinamente laçados. O chefe, esse, depois de lhe passar o azedume, nunca mais pensou nisso. E há quem diga que em determinadas alturas também aparecia no departamento sem laço. 

2 comentários:

Ceridwen disse...

Tu aperta bem essa gravata ;-)
Adorei!

Severino disse...

Interessante gostei!