terça-feira, 6 de outubro de 2009

Venenos e Remédios

"- Então, Excelência - inquire o velho Sozinho - tão cedo e já a chatear as moscas? - Que se passa, Suacelência? - pergunta o português, emendando a indelicadeza do seu paciente. - A rapaziada da banda eleitoral - suspira, contendo uma emergente onda de fúria- a rapaziada fugiu com os instrumentos. - Mas isso é um bambúrrio de azar. Então os bandos roubaram-lhe a banda? Ignorando o tom irónico da pergunta, o Administrador acena com gravidade. Não se tratava, segundo ele, de um simples furto. Aquilo era uma cabala política, manobra dos inimigos da Pátria. - Um feiticeiro conhece todos os feiticeiros...- ironiza o velho Sozinho. - Por que não me respeita, Bartolomeu? A mim que fiz tanto pelo país? - O país preferia que o senhor não tivesse feito nada. - Por que não gosta de mim? - Eu gosto da minha terra, da minha gente. E o senhor gosta de quem? Contudo, o Administrador já desandou, estrada a fora, coxeando levemente. Bartolomeu e Sidónio ficam olhando a figura do dirigente desvanecer-se como se assistissem ao seu ocaso político. - Sinto pena dele - admite o português. - Pois eu estou-me merdando para o gajo - remata Bartolomeu. (...) - Posso fazer-lhe uma pergunta íntima? - Depende - respondeu o português. - O senhor já alguma vez desmaiou, Doutor? - Sim. - Eu gostava muito de desmaiar. Não queria morrer sem desmaiar. O desmaio é uma morte preguiçosa, um falecimento de duração temporária. O português, que era um guarda-fronteiras da Vida, que facilitasse uma escapadela dessas, uma breve perda de sentidos. - Me receite um remédio para eu desmaiar. O português ri-se. Também a ele lhe apetecia uma intermitente ilucidez, uma pausa na obrigação de existir. - Uma marretada na cabeça é a única coisa que me ocorre. Riem-se. Rir junto é melhor que falar a mesma língua. Ou talvez o riso seja uma língua anterior que fomos perdendo à medida que o mundo foi deixando de ser nosso."
In Venenos de Deus, Remédios do Diabo, Mia Couto

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