domingo, 4 de outubro de 2009

O Evangelho Segundo Clarice


 Shiori Matsumoto

"Entre duas notas de música existe uma nota, entre dois factos existe um facto, entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam existe um intervalo de espaço, existe um sentir que é entre o sentir – nos interstícios da matéria primordial está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de silêncio."
in A Paixão Segundo G.H.

11 comentários:

António Conceição disse...

Compreendo que goste deste texto. Ele vem na linha dos filósofos franceses da segunda metade do séc. XX que tanto aprecia. Tal como os desses filósofos, também este texto não significa absolutamente nada.

Woman Once a Bird disse...

Gosto desse Funocentrismo que o caracteriza nesta questão: se não lhe significa nada, então para os restantes também não.

Anónimo disse...

Eu gostei muito do texto e da imagem.

António Conceição disse...

Entendamo-nos. Eu não disse que subjectivamente o texto não possa significar tudo e mais alguma coisa, para quem quer que seja. O que eu disse é que, justamente por isso, não significa absolutamente nada.
Se eu for numa noite escura para o meio do monte com uma lanterna acendê-la e apagá-la, isso também pode ser interpretado por quem me veja como um conjunto de sinais que significa qualquer coisa. E podem entreter-se a interpretar esses sinais que não têm significado nenhum, para além de serem luzes emitidas por uma lanterna a acender e a apagar.
É o caso deste texto. Alinha caracteres que não significam rigorosamente nada. Logo, cada um pode ver neles o que quiser.
E a prova definitiva disso é que se passarmos o texto para a negativa (Entre duas notas de música não existe nota alguma, entre dois factos não existe facto algum, entre dois grãos de areia por mais separados que estejam não existe intervalo de espaço algum, existe uma ausência de sentir que é entre o não sentir - nos interstícios da matéria primordial não está a linha de mistério e fogo que é a respiração do mundo, e a respiração contínua do mundo é aquilo que ouvimos e chamamos de ruído.") ele continua a significar exactamente eo mesmo, e a Nefertiti pode continuar a escrever que gostou muito do texto.

Woman Once a Bird disse...

Funes:
O exercício de traspor o texto para a negativa é engraçado, mas vale o que vale - e pode ser aplicado a uma infinidade de outros textos que eventualmente o Funes considere significativos. Mais ainda é o facto da linha da sua argumentação não apresentar efectivamente razões para que este texto (este excerto, para ser mais precisa) nada signifique. Que significa afirmar que pelo facto de poder significar tudo e mais alguma coisa o texto não significa nada? Ou a visão única é apenas a viável? E que lhe garante que num texto mais fechado, o Funes atribua a significância do autor?
Continuo sem perceber a sua argumentação, por mais sinais de lanterna que o Funes me lance.

Alice Gabriel disse...

Interessante (e irónico) é observar como a passagem do texto para a negativa revela, no fundo, uma certa falta de... "capacidade negativa"...

Anónimo disse...

Sr. Funes, eu também gostei do excerto na negativa! O não existir coisa alguma entre duas notas, dois factos e dois grãos de areia, e em vez do silêncio o ruído, são possibilidades... entre outras.

Lá está, gosto muito do texto e muito da imagem : ))

António Conceição disse...

Minha cara WOAB,

Partamos de um escritor que (julgo) ambos admiramos: Mia Couto, por exemplo.
O que é que faz de Mia Couto um grande escritor?
O facto de, quando escreve, nos dar a impressão que quer apenas contar-nos uma história. No fundo, ele passa ao papel, a longuíssima tradição oral dos povos de Moçambique que retrata de forma inigualável. Para ele, Mia Couto, os seus objectivos de escritor estão cumpridos se nos encantar.
É essa a essência da literatura: encantar o leitor.
Ora é isso que não fazem os autores pedantes e afrancesados que nos dividem. Estes não escrevem para o leitor. Escrevem para a crítica. Não pretendem encantar o leitor. Pretendem surpreendê-lo com a exibição grotesca da seu supostamente profundo pensamento. As emoções que pretendem despertar no leitor não são de encantamento, mas de admiração por uma alegada inteligência e capacidade superior de reflexão de que se imaginam portadores. É por isso que não escrevem nada que faça sentido. O leitor corria o risco de perceber e, percebendo, ter tais autores na conta de meros humanos.
Longe de mim a ideia de querer que a WOAB, a Nefertiti ou quem quer que seja deixem de se extasiar com esses textos que nada significam e que forma concebidos apenas com o intuito de os respectivos autores massajarem um ego carente de auto-estima. Chamo apenas a atenção que estão a fazer a mesma figura que faziam os personagens de "Os Maias", quando escutavam embevecidos o Eusebiozinho a recitar: "Vai alta a Lua na mansão da morte".

Woman Once a Bird disse...

Funes, um agradecimento e um esclarecimento: agradecimento pelo facto de me alertar generosamente quanto à semelhança com personagens queirozianas; esclarecimento quanto ao facto de presumir que sou admiradora de Mia Couto. Não sou, pelo simples facto de ainda nada ter lido, a não ser excertos.

Eu percebo que a citação o confunda; escolhi-a exactamente pelo seu carácter secreto, descontextualizando-a de um todo. A intenção foi minha e só eu a posso entender. O Funes interpretou-a como é seu hábito.
Como sabe, Clarice é uma paixão. E atrevo-me a recomendar que experimente um livro de contos (olhe, o Laços de Família é um bom exemplo) para confirmar o seu des-gosto.
Quanto ao Mia Couto, qualquer dia iniciarei aventura. Tem vindo sempre muito bem recomendado.

PS: penso que o consolará a ideia de já não haver ego a massajar, no que diz respeito a Clarice (nem a Derrida, para o deixar ainda mais consolado).

António Conceição disse...

Sokal, o vosso pesadelo, WOAB, chama-se Sokal.

Woman Once a Bird disse...

Pressupõe mal. A Filosofia não tem que se equiparar à Física. São campos totalmente diferentes, ainda que dialogantes. E já agora que alude ao caso num post de Clarice, nem a Literatura. Portanto, o triunfosinho de sokal em publicar um artigo alegadamente sobre nada numa revista científica não me provoca nem temor, nem tremor. Nem avaliação de resto; nada percebo da área para desconstruir as acusações que o homem teceu quanto aos pares.

Obviamente pergunto-me quanto à pertinência de um Físico de profissão se dedicar a este tipo de exercícios (não será propriamente o campo da arte, como foi o caso de Duchamp) e mais ainda que seja evocado com alguma admiração e para incutir algum terror treze anos depois do feito(zinho). Mas se pareceu muito bem aos meandros da Física (Quântica), que o seja. A mim só me ocorre comentar a falta de que fazer.

Caro Funes, não tremo e muito menos sonho com Sokal. Parece-me que vai demasiado alta a lua na mansão da lógica (leia-se com a entoação queirosiana requerida).