domingo, 8 de fevereiro de 2009

Subsídios de domingo à noite

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua
paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura,
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿ e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a
paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega


Herberto Helder




6 comentários:

Marta disse...

Este, minha querida, habita-me o coração há muitos, muitos anos.

Não é uma paixão recente.

Excelente escolha:)

António Conceição disse...

Fraquinho, muito, muito, muito fraquinho, o poema.

"O esquecimento é a meta
Eu cheguei antes".

Em duas linhas, Jorge Luis Borges esgotou o tema que H. Helder tenta com infelicidade abordar em muitas e inúteis linhas.

Unknown disse...

Não basta ter paixão é preciso vivê-la. Nunca te esqueças de aproveitar essa vivência porque é belíssima...

Woman Once a Bird disse...

Minha amiga/o:
Mas ter já não é viver? É preciso é embriagarmo-nos (como nos dizia o amigo francês) com o que nos rodeia e deixarmo-nos inundar pelo assombro.

Anónimo disse...

eu, como tu sabes, não gostos dos gregos! :)
Pouco me interessa a paixão. De momento, se morresse, não teria paixão.
Pronto, H. Helder não é o "meu poeta" de eleição.

Su disse...

ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável



jocas maradas de sons