quinta-feira, 14 de agosto de 2008

"Qualquer queda permanece na certeza da emergência"*

Sobre mulheres que trocam a filosofia pela religião, nada tenho a dizer (até porque a expressão noiva de Cristo me provoca graves comichões). Devoções à parte, a figura de Heidegger merece-me algumas perplexidades. Funciona em mim como esse outro génio, a quem presto devoção nomeadamente na audição do Prelúdio de Tristão e Isolda. Homens indignos com um labor genial, que nos obriga a transcender a sua (pouca) humanidade.
Ao homem que se filiou no partido nazi e escreveu loas ao ditador pertencem algumas das páginas mais importantes da filosofia contemporânea. O filósofo inscrito na infâmia do século XX inspirou outros tantos de origem judaica, atraídos pelo brilho do seu pensamento, mais caligrafia que homem. Não terá sido apenas Husserl que Heidegger traiu. Quando evoco esse episódio, lembro-me sempre no que deve ter significado tal filiação a Hannah Arend't, judia, aluna e amante.
A traição não é novidade nos corredores da filosofia. Lembremo-nos desse Agostinho que dizem santo e que só assim se tornou no dia em que abandonou a mulher com quem vivia e retirou-lhe o filho de ambos. A filosofia às vezes parece mesmo uma rameira, em que se sacrifica tudo no altar de uma razão velada.

*Obviamente, Heidegger.

9 comentários:

António Conceição disse...

"Ao homem que se filiou no partido nazi e escreveu loas ao ditador pertencem algumas das páginas mais importantes da filosofia contemporânea."

Pertencem? Não fazia a mínima ideia. E já foram publicadas essas páginas? Ná, eu teria lido qualquer coisa sobre isso. Devem ser inéditos.

PS- A WOAB sabia que eu vinha cá fazer este comentário, não sabia?

Su disse...

parece?----------------é---------

jocas maradas

Woman Once a Bird disse...

Funes, só não sabia bem a que horas.

Woman Once a Bird disse...

Su:
Só as vezes, só quando grafada com letra pequena. Apenas alguns fait-divers. ;)

Táxi Pluvioso disse...

O nazismo foi a materialização política do sentimento mais humano de todos: o desejo de fazer mal ao outro. O Wilhelm Reich atribuía-o a uma perturbação na libido, mas é a maneira de ser humano.

António Conceição disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
António Conceição disse...

Não creio que o nazismo fosse o simples e primário desejo de fazer mal ao outro.
Foi algo intelectualmente superior e, de certo modo perverso, mais nobre: foi o desejo de fazer do mal uma estética.
Vejmaos: o simples desejo de fazer o mal dispensaria as paradas de Riefenstahl e os campos de concentração. A barbárie é comum e o nazismo não foi uma simples ´barbárie. Foi, como disse, uma estética. E uma estética triunfante.
Tomemos o exemplo do holoscausto. Simples barbárie teria sido eliminar os judeus todos. Isso fazia-se simplesmente a tiro, na rua, como se fez na antiga jugolávia nos anos 90 ou agora no Darfur. Não são necessários uma organização e um programa específicos para o efeito.
Não me parece que tenha sido nunca intenção dos nazis acabar, pura e simplesmente, com os judeus todos. A sua intenção foi mais medonha e mais bela: foi criar um programa teatral, um ritual, um pathos de horror que, muito mais do que visar a eliminação completa dos judeus, visou criar nos judeus que sobreviveram, um sentimento infinito e perpétuo de culpa por terem sobrevivido.
É um mal de segundo grau, mais elaborado e elegante. E, deste ponto de vista, o nazismo foi um êxito absoluto. Porque, por essa via, deixou raízes e plantou as sementes que o farão um dia renascer.
Uma vez à solta, o apelo da estética do mal é irresistível.

Táxi Pluvioso disse...

Não sei a ideia era essa. Parece mais coisa saída do cinema de Visconti ou Liliana Cavani.

O processo de eliminação dos judeus começou porque nenhum país se mostrou interessado em ficar com eles. Inglaterra à cabeça.

Já se respirava anti-judaísmo na Europa, nos cafés de Viena e Berlim, muito antes do Hitler chegar ao poder. Até Marx lhe dedicou umas considerações dentro desse espírito, enquanto jovem.

A chegada dos nazis ao poder foi o culminar político desse espírito. Para mim, o fascista vive dentro de todas as pessoas, é só dar-lhe oportunidade para se manifestar, e esse tal "mal" está instalado outra vez.

Para animar o Verão tenho estado a publicar uns posts com música estival. No último meti o "twist", uma dança que fez os avós rebentarem as articulações. Ver aqui.

Woman Once a Bird disse...

Hei-de voltar a esta questão. Se por um lado concordo com alguns pontos de vista do Funes, não vou tão longe. Não acho que o nazismo fosse tão elaborado que previsse o que restaria aos sobreviventes. Aliás, sobreviventes não me parece ter sido considerado de todo.
Parece-me que vai bem mais além. De certo modo, parece-me que a questão do holocausto colocou-se a partir de um horizonte muito mais ingénuo que o que o Funes aponta. Simplesmente, a população judaica não tinha lugar no ideal estético.