Ano um:
"Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente, longamente."
Manuel Alegre
Ano dois:
A cena é apadrinhada pela Dança da Fada Torrão de Açúcar, do Quebra Nozes de Tschaikovsky. Os longos cabelos loiros pendem da varanda do camarote, cabeleira improvisada em moça morena de olhos negros. A maquilhagem burlesca, o fato improvisado. Hoje é Vanina, que (não) escuta nervosamente o seu Guidobaldo: a deixa, a deixa, não me posso enganar na deixa. Ensaio após ensaio, Guidobaldo de caracóis, balbucia o poema e atreve-se a ajoelhar no chão, batalha de encenadoras contra orgulho de macho-criança que não gosta de declarações ao varandim (ainda por cima de joelhos).
Ano três:
Agarra o fantoche tosco, construído em uma sala de trabalhos manuais, carinhosamente vestido com tecidos recolhidos aqui e ali; é Ana, aventureira inglesa que escapa ao Pai que lhe tolhe o amor com Machim. A fuga, a cargo de Carl Orff, com o seu Amor Volat Undique. Desembarcam na Ilha, ao som de Fausto, logo após uma tempestade incrível sob a batuta de Grieg (Suite n.º2, Op.55), acompanhada por um cenário de papel brilhante com ondas (in)seguras de mãos invisíveis.
"Anjo és tu, que esse poder
Jamais o teve mulher,
Jamais o há-de ter em mim.
Anjo és, que me domina
Teu ser o meu ser sem fim;
(...)
E minha alma, forte, ardente,
(...)
Covardemente sujeita
Anda humilde a teu poder.
Anjo és tu, não és mulher."
Almeida Garrett
É Julieta na Ilha, recriação tosca da velha história. Machim, que também foi Guidobaldo e agora é Romeu, está mais rebelde. Ela também. A adolescência fervilha no palco e Julieta tenta acordar o seu Romeu com estalos que não são propriamente encenados. Romeu não perde a pose e não acorda, aguenta os bofetões de olhos rasos de água. A sua declaração será feita mais tarde, depois de terminar a história, nos créditos finais. Dançam os dois ao som de Azembla Quartet, e embora esqueçam tudo o que se disse, Romeu não esquece o estalo e retribui com real pisadela à Julieta dos seus tormentos. Entorna-se o caldo e a história de amor transforma-se em drama de faca e alguidar, só resolvido com o pulso firme das encenadoras, quase mortas de riso.
Cai o pano.
3 anos depois:
Reencontrei Ana/Vanina/Julieta esta semana, que me escreve a saudade dos nossos teatros. Eu também. Também tu, não é, Nefertiti?
De Machim/Guidobaldo/Romeu, nada sei.
"(...)
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.
(...)"
Luís Vaz de Camões
2 comentários:
Sabes, chorei ao ler este post! Tu matas-me, WOMAN!
Também encontrei a Vanina, aliás, eu fui "buscá-la" : )).
Tenho muitas saudades. Um mar de saudades.
Texto magnífico, minha querida amiga!
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