segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Um corte nunca é inocente...

... pensa, com o cabelo a pingar lamento. "Deixa-me respirar por muito, muito tempo, o odor dos teus cabelos (...)"
relembra, enquando estes desfiam vertiginosamente perante a invasão implacável da tesoura. E rememora a cabeleira dessa outra mulher, farta, cabelos feitos de corda; fios longos, brancos, a perder de vista, que passeiam languidamente por entre os ombros e terminam nos seios, cobrindo-os apudoradamente.
Um corte nunca é inocente, repete, enquanto os fios a deixam para trás a olhar fixamente o espelho que lhe devolve o olhar. Há anos que não os deixa dobrar a linha do pescoço, castigando-os impiedosamente. Não resiste à rebeldia, à vontade de se espraiarem livremente. E corta-os, num impulso arrebatado. Quando a mão os sustem e a guilhotina os divide, sente a satisfação de sentir uma parte de si quedar-se no chão. Estilhaços rapidamente varridos. Sai mais escorreita, ciente da renúncia às recordações.

(Fotografia de Man Ray)

1 comentário:

Anónimo disse...

pelo menos não tens ninguém que te goze sempre que vais ao cabeleireiro. Espera, por acaso achei o teu cabelo muito "organizado" hoje ; )