Recebo o link para o Público de última hora, que dá conta do suicídio conjunto. "Filósofo André Gorz e mulher cometeram suicídio." Assim mesmo: primeiro e último nome da parte dele, mulher da parte dela. Em caixa baixa.
Percorro o artigo; leio o nome dele e respectiva biografia, apresentada de forma sucinta. Ao longo do pequeno artigo, ela não possui identidade, para além de ser mulher dele.
A magnífica declaração de amor ficou por traduzir. Reduzida a pó, em notícia lida num sopro que o chama de filósofo a ele e de pertença a ela. Morre o filósofo e a mulher. Ela, apêndice. Matou-se o filósofo. Matou-se também a mulher. Sem rosto, sem biografia. Sem nome.
terça-feira, 2 de outubro de 2007
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24 comentários:
O apontamento do Público on line, não passa disso mesmo, um apontamento biográfico do filósofo. É o facto de ser filósofo que transforma o acontecido em notícia, ao que parece, ela, a mulher, publicamente, é a mulher do filósofo.
Nesta reciprocidade -«je ne te fais pas ce que je ne voudrais pas que tu me fasses.»- não há lugar para apêndices. Ela pertence-lhe por amor, logo, não está coisificada. Ele pertence-lhe por amor, logo não está coisificado.
O link que recebeste é uma gotinha, inha de água...
O link que recebi foi redigido por alguém. E esse alguém optou por excluir o nome dela (Dorine não exige assim tantos caracteres).
Nada tem que ver com amor.
Não, WOAB, não tem a ver com amor. Tem a ver com notícia. Porque a morte dela, de extrema importância para os que a cercavam, não tem qualquer relevância noticiosa. Por isso, o nome dela para aqui não conta. E não é por ser mulher, é por não ter uma dimensão pública. Nem tudo se reduz ao sexismo... (já pareces eu-sei-quem que sempre que se lhe apresenta um material laranja vê sempre segundas intenções e pergunta porque não é rosa...)
Sancho, parece-me que a simples referência do nome dela não seria assim tão problemática, mesmo sendo ele a causa da notícia. Aliás, a última publicação do autor remete para Dorine, portanto até estaria perfeitamente adequado.
WOAB,
claro que não. Mas isso não é uma questão de sexismo, é antes de falta de sensibilidade ou até de ignorância por parte de redactor. Admito que te choque: mas espero que a ausência do nome dela seja tão violenta quanto a eventual ausência do nome de um dos maridos de Hanah Arendt, num qualquer apontamento biográfico.
Todavia, suspeito que não...:-)
Comparas o incomparável. A notícia em questão diz respeito a duas pessoas que cometeram suicídio conjuntamente. Ora, parece-me estranho que não se evoque sequer o nome da segunda.
Quanto a Arendt, nos apontamentos biográficos é comum surgir sim o nome dos cônjuges. Para além da referência exaustiva ao relacionamento com Heidegger.
Depois de milhares de anos de exploração, violação de direitos, roubo de crianças, morte nas fogueiras, ablação forçada dos genitais, venda, casamentos obrigatórios, há muitos homens que ficam chocados por algumas mulheres (poucas ainda, infelizmente) defenderem com dureza os direitos das mulheres por pequena que seja a injustiça.
Claro que não é a mesma coisa esquecer o nome da mulher de um ilustre ou esquecer o nome do marido de uma ilustre. A segunda é provavelmente lapso, a primeira é provavelmente por acharem que não é importante.
Um duplo suicídio é uma notícia seja quem for que o cometa, porque uma decisão muito pessoal é tomada por duas pessoas. A razão? Não sei. Mas o nome da mulher é muito importante. O não estar ali não é apenas uma questão de falta de sensibilidade - é discriminação.
A longa recusa da mulher enquanto sujeito. Típico. Mas de se chamar a atenção, sem dúvida!
ó talisca, quase que me emocionava com esse seu titibitaite. A ver se vc entende de uma vez por todas: aqui o homem não tem qualquer problema em reconhecer a discriminação que a Mulher sofreu e sofre, mesmo na sociedade ocidental. mas nem tudo se reduz a esse obscurantismo machista que nos faz tomar por certas premissas erradas.
A mim o que me chocou na notícia foi a ruptura que o acto representa na filosfia francesa.
A tradição manda que o filósofo mate a mulher (como Althusser fez a Hélène Rytmann), não que se suicide com ela.
não fiquei nada chocada.
por um motivo qualquer, duas pessoas decidiram acabar com as suas vidas. uma era uma figura pública, logo é normal que o seu nome seja motivo de notícia.
por que o nome do outro (da mulher) também tinha que ser referenciado? será que era de sua vontade?
talvez, e nisso até concordo, fosse mais elegante referir o nome da senhora... da Dorian, da mulher do filósofo. só isso e mais nada.
enfim... nomes há muitos! e homens e mulheres que se suicidam também.
Aí é que te enganas, Sancho. Há sempre resistência quando se fala em questões ligadas à discriminação entre sexos. O posicionamento típico é o de recusa.
Nefertiti:
Mais uma vez, o que aqui coloquei em questão é a notícia. Nada mais.
mai nada : ))
WOAB:
Sabes que os maluquinhos das teorias da conspiração dizem sempre exactamente??? Nem sabes o quão parecido é o discurso (olha que eu tenho conhecido muitos)...
Agora a sério: estás a escrever num jornal generalista (logo, o público-alvo é diverso) e tens que dar um título a uma notícia. Qual será o título mais adequado?
1. Corine e marido suicidaram-se;
2. André Gorz e Corine suicidaram-se;
3. André Gorz e mulher suicidaram-se
É que se não identificares a Corine como esposa do filósofo, a evidência e clareza que se pretende para o título, perde-se. Porque muito pouca gente saberá quem é Corine. A mim, sinceramente, parece-me óbvio.
Bjs
E não se refere ao longo do artigo porque...
Mais uma vez, não apresentas argumentos sérios... Mas estás à vontade para me apodar de maluquinha da conspiração.
Caro Sancho:
Como dizia o Corto Maltese, "a ironia fácil aborrece-me de morte".
O seu discurso parace igual ao daqueles "ali os homens" que dizem que não são racistas e logo de seguida arrematam com um "eu até tenho amigos pretos" ou "eu até tenho amigos brancos" que isto do racismo dá para os dois lados.
O senhor Sancho não é machista. Fantástico e um prémio e um louver para ele. Azar. O mundo é. O mundo inteiro, excepto algumas pequenas ilhotas de esclarecimento.
O senhor Sancho é um optimista. Fantástico. Mais um prémio para esta mesa. Mas a luta pelos direitos das mulheres começou há muito pouco tempo e não tem espaço para pessoas que relativizam "esse obscurantismo machista".
E sim, é verdade, infelizmente as mulheres que lutam pelos direitos à igualdade às vezes têm que ser radicais e sim por vezes o universo parece conspirar contra elas. Mas é que parece mesmo, senhor Sancho.
Mas eu e o senhor Sancho podemos dizer que é paranóia, porque somos homens, não é? Pois é.
Não me parece que seja somente discriminação...
Há quem se imponha um limite de caracteres... esgar de palavras nuas à dimensão do tutano... quase telegrama...
Psicólogo X e mulher suicidam-se (stop) Eminente figura fez Y e Z (stop) Sou obrigado a escrever este "artigo" e tenho de voltar ao departamento de contabilidade (stop)
Às vezes parece-me que há cada vez menos poesia nos lugares onde não seria suposto haver poesia... E é uma pena...
Tanto como a discriminação vertida no papel que atribuimos às pessoas... irrita-me que se faça um esforço tão consciente para ignorar beleza... e descriminemos de forma tão vazia... o papel que em nós... damos às coisas...
mas se calhar não faço muito sentido...
Ok, foi um gesto de puro machismo.
Redactor mau, jornal mau, mundo mau!
Não terá o feminismo aprendido com os seus erros, conforme preconiza Elisabeth Badinter?
Pensava eu que o "Caminho Errado" teria recentrado o debate do feminismo, mas pelos vistos estou errado!
Tenho pena de ter chegado só agora.
Mas que é descriminação isso nem dá para discussão, pelo menos se for uma discussão intelectualmente séria.
Marta:
Ainda chegaste muito a tempo. :)
Também tenho pena de não ter tempo suficiente para desenvolvê-la como deve ser.
Sancho:
Vamos lá deixarmo-nos de birra de menino contrariado.
Como já tive oportunidade de te dizer, ainda não consegui aceder à Badinter, já que os escaparates teimam em mantê-la arredada. Mas agora pergunto-te eu... Já deste uma vista de olhos pelo Bordieu?
Dorine era o nome da senhora.
Pegar em Badinter, neste caso, é contraproducente - se o que se pretende é provar teorias da conspiração e manias da perseguição. É que Badinter defende que a única diferença entre homens e mulher é uma construção social. Assim sendo (e não o digo que seja), uma simples notícia de jornal em que o nome da mulher é ocultado é sim importante; e discriminatório e, e, e. Pelas razões óbvias. Quanto ao processo de vitimação é, realmente, algo a combater, mas isso não nega a existência da vítima. E aqui, não se levanta a questão de “quem a vê como vítima”, já que ela é, tão-somente – invisível.
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