Estava imbuída de aspirações divinas. Aos 18 anos, para além da competição com as restantes colegas de curso que levava muito a sério, também procurava ser agraciada com o espírito de iluminação religiosa, com laivos acentuados de histeria. Às terças, quintas, sábados e domingos a moça era também beata; nos restantes dias era apenas parva.
Imbuída do espírito de missão, convidou as pessoas com quem habitualmente almoçava para assistirem, no dia seguinte, a uma peça de teatro na qual participaria. As convidadas ainda conjecturaram se seria coisa para comparecer; sabiam que a organização estava a cargo do bando de colarinhos abotoados que se juntavam num insuspeito prédio sediado na PAV (sintomático, ser uma rua de padre), mas não quiseram dar ouvidos ao toque de alarme que ecoou pelos cérebros. Nem se lembram bem do local em que se deu o massacre. Entraram, apenas com o intuito de reforçarem positivamente a infeliz que sabiam algo fanática.
A alegria contagiante das pessoas que já lá estavam fizeram-nas recuar logo à entrada: beijinhos e olás efervescentes geralmente não constituem bom agoiro. Ainda assim, ignoraram os sinais de idiotice eminente e avançaram. Sentaram-se alinhadas, constrangidas com aquela alegria (es)forçada. Foram informadas que haveria uma cerimónia religiosa. Ao final da moderna eucaristia com cânticos a lembrar os espirituais negros dos filmes americanos (versão muito, mas mesmo muito rasca), acontecia o espectáculo.Depois da mini-peça de teatro onde a criatura teve uma prestação lastimosa (o texto a tal se prestava), a tribo dos contentinhos começou a entoar canções absurdas sobre a olaria de Deus, vasos quebrados com o nome das tristes convidadas, que sairiam dali como vasos novos. Saltavam como coelhos, com os olhos esbugalhados, batendo freneticamente palmas. Coreografavam as músicas que se sucediam a uma velocidade desvairada, cada uma mais absurda que a anterior; o culminar da cena de possessão demoníaca aconteceu quando aquelas criaturas alucinadas, que normalmente andavam disfarçados pela cidade como se de normais estudantes se tratassem, começaram a berrar um cântico em Inglês, que repetia incessantemente You have Jesus in your heart, you have Jesus in your soul. O desatino era tal que, ao entoarem o estribilho, bamboleavam-se ora apontando para o local onde estaria o coração, ora apontando para a sola dos sapatos que traziam calçados. Perante tal coreografia, as convidadas, aterrorizadas, concluíram que se provava que Descartes estava errado: a Alma não será essa realidade espiritual que anima a realidade material. A alma é, tão somente, essa prótese facilitadora da locomoção, da qual não prescindimos: a sola dos sapatos. Será de supor que os saltos altos terão as mais altas aspirações.
6 comentários:
ter a alma na sola do sapato é um ponto de vista muito interessante. gostei da versão.
Humm...
E eis que surge depois de a ler...
Se o conceito de alma foi inventado por "espiritistas" armados até aos dentes com simbolos religiosos, quem não acredita neles... deveria acreditar nesse conceito?
Uma alma em cada um...
Apenas propaganda?
Propaganda mal traduzida ainda por cima!
Há muita gente desalmada por aí, mas com alma, não sei. Falo da minha, mas na verdade nunca a vi.
Talisca, é só voltar o sapato, vem em duplicado. E agora até existem umas engraçadas, que deixam um traço de flores na poeira dos dias ou que são de cores variadas. ;)
1- Em primeiros, a WOAB tem sorte (a narradora é a WOAB, não é?). A mim, quando me calhavam essas estopadas, não vinham acompanhadas de espirituais negros, mas de chachadas tipo "canta-canta, amigo canta, vem cantar esta canção...".
2- Em segundos, faz muito sentido que a alma esteja nas solas, sim senhor. Por isso é que há grunhos (tipos com alma de tamancas), brutos (tipos com alma de bota cardada), frágeis (tipos com alma de chinelo ou pantufa)e por aí fora.
Eu tenho cada vez mais a minha alma num par de ténis... ou numas botas muitoooooooooooooooooo
confortáveis :)
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