quinta-feira, 30 de agosto de 2007

Words of Gluttony and God*


Nunca tinha sido uma criança de fervores religiosos, bem pelo contrário; frequentava a igreja por cláusulas contratuais relacionadas com obrigações familiares. Nada mais. O ritual dominical era um verdadeiro purgatório, com a excepção da parte final, que sempre lhe havia sabido a pouco, com uma única hóstia piedosamente depositada na língua. Nela se demorava, prolongando o sabor do que lhe diziam ser Cristo; acreditava gulosamente na fila para a obter, secreto deleite que terminava com duas ou três voltas entre a ponta da língua e o palato. Em tão tenra idade, a cerimónia da comunhão proporcionava-lhe a única experiência mística que alguma vez sentiria.
Ao atravessar os portões do convento, com a desculpa da visita a alguém, não imaginou o que estava prestes a suceder. Na verdade, aquelas mulheres cobertas assustavam-na, a roupa escura a pesar-lhe no olhar. A sala de visitas era sombria, decorada com paredes brancas e gélidas. Quase ao início, uma parede e uma janela gradeada dividiam a sala. Do lado de lá, as residentes; de cá os visitantes. Nada de tão dramático como à primeira vista lhe pareceu: a janela foi aberta de par em par e o gradeamento desapareceu momentaneamente. Só restava a parede de cal branca, a marcar a separação irredutível entre forasteiros e moradoras.
A conversa correu lenta, os minutos a ressoar como se de horas se tratassem na cal das paredes. Inquietava-se no banco, mordendo a língua para não interromper a conversa sussurrada entre a Mãe e a moça que lhe parecia ter só olhos e lábios. Até que aconteceu o milagre do pão. Não o de um homem que alimenta cinco mil com cinco pães. O milagre naquele dia aproximou-se silenciosamente da janela de murmúrio com um saco de plástico azul, que lhe foi oferecido. No seu interior, a preciosidade de aparas de hóstias, produzidas naquele local e distribuídas pelas várias igrejas da região. Explicaram-lhe que funcionava com uma prensa e que, portanto, a produção implicava sempre centenas, milhares de aparas de hóstias.
Saiu de lá com o saco azul cheio de aparas e com uma leve sensação de chamamento na língua. Se optasse por ali ficar, teria sempre milhares de aparas. Se tomasse o hábito e cobrisse o corpo pecador, poderia dar largas à gula. Alimentar-se de hóstias, passar os dias de mangas arregaçadas a prensar folhas e folhas de hóstias. Saiu a ponderar voltar e ficar, por amor às aparas, aquela orgia de aparas. Tirá-las à mão cheia e metê-las na boca, senti-las a desfazerem-se lentamente.
Passou-lhe o fervor à medida que o saco azul se esvaziou perante as suas mãos com cinco anos de idade cada uma. Fartou-se de aparas. E de hóstias. Foi o mais próximo que se sentiu de Deus.

Pintura de Ignacio Lloret
*Da autoria de Ceridwen, que me arrancou ao desespero de não conseguir intitular o post

7 comentários:

Sancho Gomes disse...

Divinal!

Bjs

Anónimo disse...

eu tinha medo de mastigar as hóstias, porque o padre dizia "este é o meu corpo..." e falava em sangue e carne..., enfim, coisas do género . Achava sempre aquele ritual bastante esquisito e até macabro. naqueles momentos ficava sempre com o coração aos pulos, muito nervosa e assustada.

Anónimo disse...

escusado dizer que adorei o texto.

Bayushiseni disse...

Sóp comi uma hóstia na vida. Tinha seis anos e numa aldeia chamada Salvador, para onde fui exilado com a minha família.

Pensei que pudesse salvar-me. Também me moveu a curiosidade da importância do acto.

Sabia a farinha sem sal. Foi uma desilusão. Deus tinha-me falhado pela segunda vez. Aos seis anos é um grande peso. Risquei a igreja católica da mina lista de possibilidades nessa altura.

Woman Once a Bird disse...

Pela boca morre o peixe.

Anónimo disse...

tu, sancho, és o máximo.

acabei de ir ao teu cantinho: ))

abraço

[A] disse...

eu também COMI hóstias...rs

mas o texto está verdadeiramente saboroso.