terça-feira, 10 de julho de 2007

Entre o Altar e a Fogueira

Bem sei que prometi "amena" mas exaustiva conversa frente a uma boa refeição e vinho a condizer. Mas a verdade é que fiquei a ruminar nesta questão e apetece-me aqui deixar um apontamento sobre a impossibilidade da feminilidade em Maria. A concepção tradicional de Maria - concebida sem pecado por homens de batina - provoca uma extrapolação absoluta da feminilidade; torna-a assexuada. Só é Mulher na altura de dar à luz, porque é momento absolutamente necessário para o surgimento do "Filho do Homem"(??). Assim, sublimada de tal modo que deixou de ser Mulher, para única e exclusivamente ser Mãe - com os lirismos decorrentes: uma Mulher não está completa enquanto não dá à luz. A concepção Mariana é, portanto, uma impossibilidade, o excesso, um obstáculo artificial, inacessível, desprovida de substância real mas apresentada como a possibilidade para todas as outras: inaugura-se assim uma assimetria absoluta entre o que a Mulher deve ser (o ideal mariano) e o que a Mulher realmente é. Esta idealização condena-a a ser sempre precedida por uma cena predicativa: tornar-se apenas no que é dito ser-lhe permitido ser: "Cheia de Graça" e de virtude, claro está. Por tudo isto, Maria que concebeu "sem pecado" tornou-se a companheira inumana, descorporizada que ensinou a tradição cristã a apontar o dedo (isto para ser suave) à Mulher que assume/reinvindica o corpo como seu.

13 comentários:

Alba disse...

Sim, mas isso é a hierarquia da(s) igreja(s). Tomaram os valores dominantes da sociedade da época, naquela região do mundo.

Ao longo do tempo os povos cristianizados mantiveram muitos dos seus cultos, adaptando-os.

Em Portugal proliferam as Nossas Senhoras do O (imagens da virgem grávida), há romarias e procissões em honra da Senhora do Bom Parto e do Bom Sucesso em várias localidades.

Em França, um evangelho (apócrifo, claro) falava no parto de Maria, ajudado por uma serva surda-muda.

Ou seja, essas representações da "carnalidade" da gravidez e do próprio parto de Maria, suprimidas da doutrina oficial, manifestaram-se de forma poderosa entre os "humildes".

As instituições têm temido os corpos. Mais particularmente os corpos femininos. Maria foi-nos apresentada isenta do "calor" da maternidade.

Pessoalmente, o que sempre vi na figura de Maria foi a sua disponiblidade. A sua fé. A questão da virgindade física sempre foi metafórica para mim.

Sei que ainda há muita gente que a interpresta à letra...

Woman Once a Bird disse...

"Mudam-se os tempos..." e ainda bem que sim. Mas esta concepção vigorou durante muito tempo. Esta concepção ainda persiste, na medida em que se continua a apontar à Mulher um código de conduta que aponta para estes valores.

Alba disse...

Isso é verdade, woab :( Ainda há muito, muito por fazer!

Anónimo disse...

não foi só Maria a vítima, mas também o próprio Cristo. A "virgindade e a castidade" foram invenções posteriores ao cristianismo. estamos a falar de uma instituição que ao longo de séculos tentou adaptar e contextualizar uma "crença/fé" conforme os tempos para melhor responder às necessidades dos crentes e também para estender os seus tentáculos pela sociedade em geral. Contudo, tenho a impressão que essa mesma instituição ficou presa em algum século que não consigo identificar bem, mas pelos rituais, hierarquias e mentalidades, atrevo-me apontar para o século XIV.
Acredito que há alguns membros na Igreja que se opõem a esses preceitos retrógrados, contudo ainda são poucos.

Anónimo disse...

WOB
como sabes, já cá vim várias vezes e tenho resistido. Desta vez, desculpa, mas não resisto

A mulher é um ser virgem e casto...algumas. Os homens também. Alguns.É isso, e ser dotada de encéfalo (pensante). Algumas.Os homens também. Alguns. Por acaso da natureza, a mulher tem útero, também.Os homens não. Esse mero acaso, permite-me, facilmente, concluir, que jamais morrerrei de cancro na próstata. Do pulmão, do colo do útero, da mama...não posso garantir.

Receita de mulher

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança,
qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize
elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso
que súbito tenha-se a
impressão de ver uma
garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só
encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas
que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso,
é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que
umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

Vinicius de Moraes

O problema das saboneteiras é que é grave...

Sancho Gomes disse...

Woab,

não comento a tua adjectivação, exclamações e interrogações trocistas, porque acho que não contribuem para a discussão, apesar de emprestarem alguma piada provocadora a temas tão enfadonhos como este.
Quanto à (impossível) feminilidade de Maria, entendo o teu raciocínio mas parece-me muito abusivo. Então o facto de Maria não ter perdido a sua virgindade faz de si mulher menor? Terá a cópula o ónus de transformação? Parece-me exagerado.
Ainda assim, acho que devemos continuar a reflectir, para o tal jantar. E como a coisa começa a ficar interessante, acho que menos do que um Cartuxa sempre redutor;)
Bjs

Woman Once a Bird disse...

Sancho:
O problema está em "decidirem" se ela perdeu ou não...
Quanto ao vinho plenamente de acordo. Passemos ao prato principal. Parece-me que isto vai sair bem caro. ;)

Rosa:
Feliz regresso aqui ao sítio. ;)

Woman Once a Bird disse...

Cuidado com o paternalismo... Lá estás tu. eu até fui bem comedida neste post. As interrogações, exclamações e afins trocistas foram bem poucos.

Anónimo disse...

o mais interessante é a vossa discusão (Sancho vs Woman), sigo-a como se de uma novela se tratasse ; ) , muito melhor.

Anónimo disse...

correcção: discussão

Sancho Gomes disse...

Woab,

como sabes, in vino veritas, por isso valerá a pena, ainda que fique caro!
Parece-me, contudo, que a nossa concordância não durará muito, pois o desacordo instalar-se-á na hora de pedir a paparoca.
Sobremesa: pudim de maracujá, pode ser?

O paternalismo: ó filha, sabes que é maior do que eu:)

Nefertiti: como sabes, o que a Woab e eu gostamos mesmo é de uma boa discussão. Ainda que por vezes radicalizemos (o que não foi o caso...).

Boas férias para as duas (já estão de férias, não estão?)

Woman Once a Bird disse...

Nem comento a piadinha sobre as férias, porque não contribui em nada para a discussão. ;)

Anónimo disse...

só tenho pena de não vos ter mais perto de mim, mas com um na montanha e o outro na planície...