No restaurante onde almoço algumas vezes durante a semana, as mesas estão sempre cheias. Uma enorme televisão sintoniza ora o National Geografic (quando os clientes são maioritariamente turistas), ora a TVI, quando os comensais são da Região. Na sexta-feira, decorria o programa da manhã, conduzido pelo Manuel Luís Goucha que usa um penteado parecido ao que alguns dos meus alunos ostentam (mas sem a gravata e o fato de fino corte) e a outra colega que, sendo muito fotogénica, tem uma voz de bradar aos céus. O programa passa para uma longa reportagem em que o título de rodapé anunciava que aquela senhora a quem filmavam a miserável casa, havia sido violada pelo próprio neto. A televisão não emite som, apenas as imagens. As divisões improvisadas do espaço em que a mulher vivia, as mãos enrugadas pela idade e pelo trabalho, a expressão resignada de uma mulher que trabalhou a vida inteira.Traja de preto, não sei se por morte do marido, se por morte da sua velhice descansada.
Reparo nos comensais, que momentaneamente se detêm sobre o que passa na televisão: as imagens e o rodapé. Uns comentam, incrédulos, que aquela velha foi violada pelo neto. Estes que comentam a desgraça da "velha" são na verdade de uma idade muito aproximada à da "velha". Apenas não trajam tão modestamente e estão sentados num restaurante, que parece ser coisa em que aquela mulher muito raramente colocou pés - se é que os colocou. Outros, mal percebem o teor da reportagem riem (é ridículo um homem novo querer meter-se com aquela mulher) e rapidamente desligam do assunto.
Em nenhum momento percebi horror pelo que aquela mulher havia passado, ou empatia pela sua vida miserável. É apenas uma velha violada pelo neto. E que raio de neto aquele, que se deita com uma mulher assim.
3 comentários:
Não terem dito que ela até devia estar agradecida, ou que apenas denunciou o neto por estar ressabiada por ele não ter querido mais, até me admira. Aliás, ressabiada deve ser a palavra que os agressores usam para designar o que motiva a queixa das vítimas (como esta palavra saltou de um reality show de má qualidade para o léxico quotidiano d@s portugus@s, que a usam para para descredibilizar o discurso de alguém é outro assunto que me escapa por completo). Ignorando que o significado primeiro da palavra é assustado, desconfiado, @s portugues@s passaram a usar a palavra para tentar dizer que o discurso de alguém está imbuído de imprecisões devido a ressentimentos/ressabiamento - Como se o ressentimento alterasse os factos....enfim, cambada de ignorantes.
"A ser verdade" é o prefixo para todas as notícias.
num mundo de moralidade pronta-a-servir, as tragédias individuais são meros apontamentos publicitários.
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