sábado, 17 de outubro de 2009

Feministas honestas têm ouvidos

Desafia-me o Sancho a responder a uma das suas muitas provocações; percebo-lhe o horizonte  e a finura. Poderia deixar passar em claro, já que o silêncio também escapa radicalmente a caracterizações de conveniência, mas concedo ao Sancho a dádiva da dúvida e assumo a sua pergunta como sendo questionamento genuíno e isento de malícia.

Comecemos (que já não é um começo,  dado que este género de diálogo entre nós tem sido, ao longo dos anos, ininterrupto).
Começas por apresentar o Feminist Philosophers como sendo uma associação (concedendo o facto de ignorares se legalmente constituída). Foste muito mais longe do que sou capaz de ir. Nunca vi Este Blog Que Seja Seu como uma associação (ainda que legalmente por constituir), nem o Conspiração às Sete como espaço promotor de uma associação conspiradora (por natureza fora da legalidade). 

Na senda deste primeiro ponto, questionas a possibilidade de uma filosofia feminista e apresentas generosamente como contraponto não acreditares igualmente na possibilidade de uma filosofia machista. Começo pelo fim, dado que é conceptualização há muito debatida entre nós, julgando-a eu mais do que debelada: não percebo porque insistes em contrapor feminismo com machismo. Machismo reflecte um posicionamento que procurou e procura inferiorizar as mulheres, ao passo que o feminismo reflecte um pensamento (com múltiplas correntes, sublinho) que pretende um estatuto para as mueres que não as inferiorize em relação aos homens. Falamos, portanto, de conceitos muito diferentes, na medida em que o primeiro procura subjugar as mulheres, enquanto que o segundo pretende libertá-las (o que não significa inferiorizar os homens, note-se). Logo, colocas-me perante um oxímoro quando formulas a questão em tais termos, o que não deixa de ser irónico.

Perguntas, retoricamente, como pode a filosofia ser machista. Não é, respondo-te.  Mas não prossigo tão rapidamente para outro ponto como se a questão estivesse resolvida com esta negação. Basta atentar na História da Filosofia para perceber que, em muitos casos, os filósofos representaram as mulheres a partir de um ponto de vista  profundamente depreciativo; isto significa que não sendo a Filosofia machista, os seus intervenientes podem efectivamente  veicular horizontes falocentricos. Leia-se Platão e Aristóteles, Tertuliano, Santo Agostinho, Rousseau e  Nietszche (que exemplarmente citas), entre muitos outros. Obviamente (e é um obviamente devidamente  sublinhado) que há que ter em conta os contextos em que os mesmos desenvolveram concepções de inferiorização do feminino - é difícil estar acima da sua época.

 À pergunta (que considero outra por tudo o que foi explanado anteriormente - e anteriormente não me refiro apenas a este post), de como pode a filosofia ser feminista, respondo de igual modo. Mas sublinho novamente que não sendo a Filosofia feminista, as questões feministas  podem ser pensadas a partir de um discurso filosófico, como de resto foi feito e continua a ser feito; atente-se no trabalho de Santo Anselmo, de Stuart Mill, de Lévinas ou de uma Cixous, para nomear muito poucos/as.
Extrapolando bastante o que me é possibilitado responder (não detenho conhecimento de causa suficiente para acreditar que as/os autoras/es do blog subscrevam tudo o que aqui escrevi) não considero escandalosa a existência de um blog em que se assume uma correlação entre o discurso filosófico e o feminismo.


(Nicholas Stael)

Não tem havido uma neutralidade sexual nos textos filosóficos, nem por parte de quem os escreve nem por parte de quem os lê. Mas é a partir da  assunção  lúcida e corajosa desta dissimetria que podemos aspirar a pensar um Pensamento anterior e para além da diferença sexual.

9 comentários:

Nefertiti disse...

Não só a Filosofia foi machista durante muito tempo, mas outras áreas do conhecimento também o foram. Não há volta a dar, está mais que provado que foi assim. Por isso, é necessário admiti-lo e seguir em frente, pois muita coisa ficou por dizer e por fazer : ))

Nefertiti disse...

Este blog nunca foi uma associação! Credo, Sancho! Isso contraria os meus princípios!

rps disse...

Que debate mais chato...

Sancho Gomes disse...

Minha amiga,

concordo com a generalidade das tuas afirmações. E por isso terás de concordar comigo que não há filosofia feminista. É, portanto, um "non-sense" falar nisso. É tipo aquela questãozinha lógica do contém vs está contido!

Vá lá, reconhece que tenho razão: vais ver que não te queima a língua ou os dedos.

Quanto à associação: reconheço que fui lesto na exploração do blog. Mas, ainda que não constituída, terás de reconhecer que não deixa de ser uma associação de pessoas em torno de um interesse comum. Não foi, portanto, nenhuma barbaridade.

Nefertiti: andas metida em várias associações e disso não te safas! ;)

Woman Once a Bird disse...

Desculpa Sancho, mas ainda que não me queime os dedos, continuo a dizer que não tens razão.
O blog assume-se como sendo um blog de filósofas feministas, o que não significa que advogue a existência de filosofia feminista. Há uma diferença substancial neste pormenor.

Sancho Gomes disse...

Não me parede poder existir "filósofas feministas", pois pressupõe a existência de "filosofia feminista". No máximo, aceitarei que é uma associação de filósofas que se dedicam a pensar o feminismo. Ou que são feministas filósofas. Isto é, que são feministas e filósofas. O que parecendo uma questão de somenos importância, é, em meu entender, uma caracterização mais rigorosa. Não do feminismo, mas da filosofia. Em contraponto com filósofos que possam ter sido machistas, também aceito que estas filósofas estejam situadas num horizonte conceptual feminista. Mas afirmar que a sua filosofia é feminista é o mesmo que afirmar que não fazem filosofia nenhuma!

Adilia disse...

Aquilo que filósofas feministas dizem, e com bons argumentos, é que o canon filosófico é misógino, isto é, os autores e textos consagrados revelam depreciação notória do feminino e alguns filósofos que fugiram a esse padrão foram ignorados pela POSTERIDADE.
a FILOSOFIA É SEMPRE FEITA DE UM DETERMINADO PONTO DE VISTA, DE UM DETERMINADO CONTEXTO, NÃO É UMA ACTIVIDADE QUE CONSIGA FUGIR A ESTE CONDICIONALISMO POR MAIS QUE SE ESFORÇE E AS VEZES ATÉ SE ESFORÇA MUITO POUCO.

nefertiti disse...

Ó sancho, não me digas isso!!! Isso não nada porreiro! Ninguém me leva a sério : )))

Um abraço, amigo.

Sancho Gomes disse...

Adília,

afirmar que o "cânone filosófico é mosógino" demonstra bem o que (não)entende ser filosofia. Todo o resto do seu articulado é a prova evidente do que eu pretendia afirmar. Rest my case!

nefertiti: sabes que eu não sou porreiro, pá!
abraço.