domingo, 21 de junho de 2009

" Vida é uma ópera e uma grande ópera"

de Eugène Delacroix
"(...)
Deus é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro, que aprendeu no conservatório do Céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e mística daqueles condiscípulos fosse aborrecível ao seu gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria passado sem mais nada, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo para o inferno. Com o fim de mostrar que mais valia que os outros, - e acaso para reconciliar-se com céu - compôs a partitura, e logo que acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
- Senhor, não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se achardes digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés...
- Não, retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
- Mas, Senhor...
- Nada! Nada!
Satanás suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do Céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias, coros e bailarinos.
- Ouvi agora os ensaios!
- Não, não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente. Certos motivos cansam à força de repetição. Também há obscuridades, o maestro abusa das massas corais, encobrindo muitas vezes o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás tratadas com grande perícias. Tal é a opinião dos imparciais.
(....)"

In Dom Casmurro, Machado de Assis

2 comentários:

Táxi Pluvioso disse...

Vocês é que têm sorte, no Verão podem assistir ao Alberto em calções, isso sim é verdadeira opera magna. Boa semana.

José Ricardo Costa disse...

Li este livro para aí há um ano. É um excelente romance, infelizmente, pouco conhecido. Tem uma ironia e uma graciosidade verdadeiramente espantosas.

JR