sexta-feira, 6 de abril de 2007

Da Velhice e do Crescimento

Releio tudo ao acaso. Estava apaixonada por este livro, queria escrever coisas bonitas. E só escrevi disparates. Hoje em dia, parece-me tudo demasiado enfático. Ainda assim, acreditava agir de boa-fé. Supunha estar a resumir-me. É possível, isto de uma pessoa se resumir? É possível conhecermo-nos a nós mesmos? Será que alguma vez somos ALGUÉM? Já não sei nada. Parece-me que todos os dias mudamos um pouco, e de repente, ao fim de alguns anos, transformamo-nos num novo ser. Tanto procurei dentro de mim, e já não encontro vestígios daquela pessoa ansiosa, perturbada, descontente consigo própria, zangada com os outros. É indesmentível que em mim vivia a quimera da grandeza. Era moda na época; todos queríamos ser excepcionais, e, não o sendo, depressa caíamos no desespero. Fiz bem em conservar-me boa e sincera. Estou agora muito velha, palmilhando airosamente o meu sexagésimo quinto aniversário. Graças a um qualquer capricho do destino, sonto-me muito melhor de saúde, mais forte e mais ágil do que nos tempos de juventude; ando mais a pé, passo melhor a noite - tenho noites óptimas, e por isso levanto-me sem esforço. Conservei-me macia como uma luva. Os meus olhos já não distinguem as coisas; tenho de usar óculos, e encontrei um par que me permite enxergar entre as ervas e na areia os pequenos objectos de história natural que são o meu regalo. Banho-me na água gelada e corrente com um prazer supremo, nunca me constipo. Já nem me lembro de ter reumatismo. Preenche-me uma calma absoluta, uma velhice tão casta de espírito como o é no procedimento diário; nenhum remorso de juventude, nenhuma ambição de glória, nenhum desejo de dinheiro, à excepção do que espero deixar aos meus filhos e netos. Sem dissabores relativamente aos meus amigos. Um único desgosto: o género humano, cada vez pior, as sociedades parecem virar as costas ao progresso, mas quem sabe o que esconde tal atonia? Que despertar se encontra latente por detrás de tal torpor? Já não vivo em mim. O meu coração passou inteiro para os meus filhos e para os meus amigos. Só sofro com aquilo que lhes traz sofrimento. E sofro bastante, por vezes demasiado, porque dar-lhes alento exige muito de mim. Falta-me coragem interior para lidar com o mal dos outros. Se os outros não existissem, eu seria completamente feliz - feliz como uma pedra com olhos -, mas eles existem e obrigam-me a existir. Alegro-me e aflijo-me neles e por eles. Quanto a mim, já nada me faz falta. Viverei muito tempo? Esta velhice surpreendente, que me apareceu sem moléstias e sem quebranto, será sinal de vida longa? Morrerei de repente? Que importa sabê-lo, se a todo o instante nos arriscamos a ser acidentalmente ceifados? REstar-me-à alguma utilidade? Aqui está uma questão importante. Parece-me que sim. Sinto que posso ser útil de uma forma mais pessoal, mais directa, como nunca fui. Não sei bem de que maneira, mas acumulei muita sabedoria. Hoje, seria capaz de educar melhor as crianças do que antigamente. Mantenho a minha fé, mantenho integralmente a minha fé em Deus. A vida eterna. O mal um dia derrotado pela ciência. A ciência iluminada pelo amor. Mas... e os símbolos, as figuras, os cultos, os deuses humanos? Não contem comigo! Já ultrapassei isso tudo. Faço agora parte do universo, e pronto. Não sou minimamente interessante, pois suporto tudo o que aconteceu de mal na minha vida e ainda consigo saborear o bem. (....) Não tenho medo da morte, lamento apenas o desgosto que assim causarei aos meus. Fui-lhes útil nos últimos vinte anos? Sim, parece-me que sim. Quis muito sê-lo. Afinal, enganei-me ao pensar existirem momentos na vida em que nos podemos simplesmente exonerar sem magoar ninguém, pois reparem: ainda sou útil, apesar da idade avançada. O meu cérebro não perdeu o vigor. Sinto que absorveu muito e que nunca esteve tão bem alimentado. É errado pensar que a velhice é um declive por onde vamos caindo: muito pelo contrário, subimos, e a passos largos, surpreendentes. O trabalho intelectual faz-se tão rapidamente como nas crianças o trabalho físico. Não é que não nos aproximemos do fim da vida, mas fazemo-lo com se fosse um objectivo, e não o derradeiro e fatal baixio onde encalharemos para sempre. In Journal Intime, George Sand, 1868

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