segunda-feira, 25 de agosto de 2008

memórias das áfricas portuguesas

(ele) ainda hoje traz as cicatrizes na cabeça, daquele dia em que, por ter roubado uns carrinhos de linhas, a dona da retrosaria lhe tatuou o crânio com as agulhas de croché. Não eram umas agulhas quaisquer e ficaram inutilizadas, queixara-se a dona da loja. E o outro que de preto passou a vermelho, não por ser comunista, mas por apanhar de todos antes de ser levado pela polícia militar. Parecia uma lapidação. E quando, na fila da farmácia, fez questão de esperar pela sua vez, negando o privilégio da cor da pele? "Eles bem podem esperar, mas a menina é que sabe", vociferou o farmacêutico. Era a época em que as meninas saloias, que usavam carrapito, deixavam nele cair a catana do preto para se tornarem "donas". E daquela vez que o rapaz que lhes levava as compras foi acusado de roubar a fruta? Esmagaram-lhe a tíbia, a face esquerda inchou tanto que o olho não abria e a mão esquerda perdeu o indicador, conta perturbada ante a visão o preto enfiado numa cama improvisada enquanto aguardava o senhor doutor. E ele, a seu lado, com a sua figura gigante, suspirava: "ai, se eu não vestisse uma farda", e ela sabia que o que ele não dizia era "ia lá terminar com aquela vergonha". Nunca percebeu se sem farda acabaria com as desigualdades ou se com a vida do preto.

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