A Elle deste
mês traz um artigo sobre o «novo feminismo». De acordo com a diretora da revista, cuja citação encerra o texto, ficamos a saber que «o feminismo de agora» é «solto, relevante e livre». E eu aqui a achar que os feminismos, desde a sua origem, sempre tinham sido relevantes, mas afinal, parece que é só "agora". O que não deixa de ser irónico, uma vez que vivemos numa altura em que muita gente defende que os feminismos deixaram de fazer sentido, precisamente, por já se ter conquistado a igualdade formal.
Entrevistadas pela revista, as fundadoras da página
Maria Capaz acreditam estar a contribuir para «as pessoas» deixarem de temer a «palavra 'feminismo'». A plataforma
Maria Capaz tem subjacente uma ideia que me parece louvável e que poderia ser de extrema utilidade, para informar e contribuir para as reivindicações feministas, caso não repetissem
ad nauseam uma mão cheia de senso comum, que reforçam essencialismos, sobre os quais urge refletir e desconstruir. Sim, há alguns contributos interessantes na plataforma e algumas tentativas de incentivar a
reflexão. Julgo, no entanto, que estas são neutralizadas pelo tom generalizadamente essencialista e acrítico da maioria das narrativas. Aliás, a Rita Dantas fez um
post maravilhoso sobre o assunto.
Que as palavras
feminismo e
feminista metem medo até mesmo às cobras, sobretudo em Portugal, já se sabe há muito. Aliás, as
Actas do Congresso Feminista de 2008 intitulam-se precisamente «Quem tem medo dos feminismos?». Algumas pessoas poderão ilustrar, de viva voz, os motivos pelos quais ser feminista, em Portugal, é coisa para se ser proscrita. Se falarem com a Maria Teresa Horta ela explicará - ilustrando com a sua experiência própria, porque é que assim é. Do lado
académico,
várias pessoas
abordaram o assunto
também. Apesar de haver, em Portugal, um trabalho de desconstrução de que feminismo não é o contrário de machismo, a propaganda com vista à desinformação rende até hoje. São comuns as respostas a garantir que são «humanistas» e não «feministas», porque são muito «femininas» e outras ignorâncias similares.
A explicação avançada por Rita Ferro Rodrigues e Iva Domingues, fundadoras do Maria Capaz, e reproduzida pela Elle, é que, pelo menos para mim, é inovadora. De acordo com o citado na revista, aquelas afirmam que o mau nome do feminismo se deve ao feminismo de segunda vaga:
«(...) na segunda grande vaga destes movimentos (que aconteceu entre o final dos anos 60 e os anos 70), acabaram por ser cometidos alguns excessos e isso, de certa maneira, acabou por contaminar a palavra».
Podem repetir?
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Jill Posener fotografa o resultado do vandalismo feminista que comprova os excessos cometidos por feministas de segunda vaga. |
Claro, como é que nunca tinha pensado nisso? Foram as feministas que deram mau nome ao feminismo!
Um pouco de conhecimento de história dos feminismos permite perceber que as feministas da chamada
primeira vaga, frequentemente chamadas sufragistas, também não caíram bem no goto da maior parte das pessoas. E a palavra
feminismo - entre a primeira e a segunda vaga - nunca foi bem vista (tal como ainda não é hoje, basta pensar no facto de, após o discurso na ONU, a Emma Watson ter recebido
inúmeras ameaças).
A revista não explica que excessos das feministas de segunda vaga são esses e que Rita Rodrigues e Iva Domingues acreditam terem «contaminado» a palavra (terá sido exigir liberdade e autodeterminação sexual? Terá sido a exigência de acesso a direitos sexuais e reprodutivos? Terá sido a exigência de eliminação de cláusulas discriminatórias no direito da família, e no direito penal? Terá sido a exigência da criminalização da violação marital? Terá sido a exigência da criminalização dos maus tratos conjugais? Terá sido a exigência de que o trabalho doméstico fosse pago? Que para trabalho igual houvesse salário igual? ....) Qual das exigências das feministas de segunda vaga terá sido o(s) excesso(s)? Não sabemos o que querem as fundadoras do Maria Capaz dizer com aquela frase enigmática porque, ainda que a tenham explicado à autora do artigo, a revista não o esclarece.
Se estavam a pensar em queimas de sutiãs, convinha começarem por investigar um pouco mais acerca do
mito da queima. Não há, evidentemente, garantias de que uma (ou várias) feministas não tenham nunca queimado sutiãs, mas,
por cá, decididamente,
nunca o fizeram. Não sei que excessos* é que as citadas se referem, mas a ideia de que foram as feministas a dar mau nome ao
feminismo é coisa de fazer chorar, de tão perverso que me parece. Acredito até que não tenha sido essa a intenção das autoras, ou mesmo da diretora da revista ao afirmar que o feminismo «agora» é que é «relevante», «solto» (seja lá o que isso for) e «livre» - mas que a apropriação dos feminismos por parte da indústria da moda, moldando-o para ser um produto
vendável, pode causar mais danos ao «nome» do que alguma vez antes, lá isso pode.
Para além de remeter para um mundo ainda mais obscuro as mulheres e os homens que lutaram pela igualdade, de forma pioneira e absolutamente corajosa, o maior perigo é, precisamente, o da confusão de que ser feminista é acreditar que as mulheres (ou
a mulher, como tanto gostam de escrever no Maria Capaz, como se todas as mulheres fossem iguais e uma massa uniforme de gente. Aliás, sobre isto já a autora do 30epicos escreveu uma
crítica contundente.) podem fazer tudo o que quiserem, como se a igualdade se resumisse a uma qualquer liberdade individual de uma mulher «mãe, profissional (bem-sucedida), consciente, empreendedora,
reivindicativa, na medida certa, feminina, feminista (...)». Como se todas as mulheres partissem [e estivessem] do/no mesmo ponto.
Os feminismos partem de uma base comum, que é a do reconhecimento da existência de um sistema social de ordem
patriarcal que prejudica mulheres e homens, com especial incidência nas primeiras. Os feminismos diferem nas abordagens que apresentam e nas soluções que preconizam para lutar (sim, lutar) contra as desigualdades (re)produzidas por esse mesmo sistema social.
Independentemente de que tipo de feminismos estejamos a falar, o objetivo é que uma pessoa possa tomar as decisões que entender sobre a sua vida sem ser prejudicada apenas porque é mulher. Alguns feminismos salientam outras categorias além do género (etnia, orientação sexual, orientação religiosa, aspeto físico, classe social, orientação política, nacionalidade, entre outras). Alguns feminismos centram-se em problemas globais nos quais acreditam que as mulheres podem ter um papel preponderante (ecofeminismo, p.e.). Há temas que dividem as feministas: a prostituição é um deles, a pornografia é outro, entre vários. Decididamente, há espaço para toda a gente e todos os contributos sérios e bem intencionados são desejáveis. A discussão, a reflexão e a (auto) crítica são pontos fulcrais de desenvolvimento de ideias e das suas concretizações. Convém, no entanto, que se tente não reforçar os estereótipos e a ignorância que se tenta combater.
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everydayfeminism.com |
(não sei qual das ligações "se inspirou" na outra, uma vez que têm conteúdos muito similares, ainda assim, a wiki parece-me mais completa).
*saliente-se, p.e., que a ação de feministas, usando máscaras a representarem cães, e que forçaram a entrada de um estabelecimento comercial, em Lisboa, que
ilegalmente e impunemente, interdita a entrada a cidadãs, foi também apelidada de «excessiva» por parte de muita boa gente que se diz «humanista» e «defensora dos direitos humanos de homens e de mulheres».